Um ano depois do início da pandemia estamos aqui, vivendo a aceleração da tecnologia e da transformação digital em todas as esferas. E com ela, acredito que temos uma reflexão geral: precisamos nos adaptar ainda mais rapidamente às mudanças e lidar melhor com as incertezas. Mas como fazer isso com a ansiedade que esse cenário todo nos apresenta? Como buscar uma visão positiva do futuro depois de tantos problemas a nível mundial?
Uma habilidade até então pouco conhecida pode ser peça-chave nesse momento: alfabetização para futuros. Desde 2012 a Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – considera a alfabetização para futuros uma das competências essenciais para o século 21, e no ano passado ela foi apontada pelo Fórum Econômico Mundial como a principal habilidade para lidar com o mundo pós-pandêmico.
Eu tive a sorte de começar a trabalhar numa empresa que estuda futuros um pouco antes da pandemia, e desenvolver essa nova habilidade fez toda a diferença para mim.
Passado, presente e futuro entrelaçados
Nós, como seres humanos, somos a soma do nosso passado, do nosso presente e do nosso futuro. Thomaz Frey, um dos mais respeitados pensadores de futuros do mundo, explica que essa relação é indissociável. Segundo ele, o que você faz no presente influencia o seu futuro. Mas a forma com que você enxerga o futuro também influencia o seu presente. Então, não é apenas o presente que constrói o futuro. Mas o futuro também constrói o presente.
Pode parecer algo meio Dark, mas é bem simples: é com base no que desejamos para nós e nossos negócios no futuro que criamos planos táticos para implementar a partir de agora, certo? Dessa forma, imaginamos o futuro para então construí-lo a partir das ações do presente. São essas imagens do futuro que movem nossas expectativas, decepções e motivações para investir ou mudar.
O problema que estamos enfrentando com esse modus operandi é que quando imaginamos esse futuro hoje, sem perceber, em geral somos capazes de visualizar apenas possibilidades limitadas pois reproduzimos automaticamente premissas, ideias e valores dominantes, reforçados por gerações de viéses de confirmação – nosso passado.
Dado o poder que imaginar o futuro tem sobre o nosso presente e sobre as ações que vamos botar em prática agora, se nossa imaginação é tão naturalmente limitada, muitas visões de futuros possíveis já são excluídas automaticamente e parecemos fadados aos cenários mais óbvios. Inclusive, acabamos por marginalizar o futuro dos que não se encaixam nessas pré-determinações.
Ficamos presos nesse loop: se não conseguimos imaginar outros futuros, não vamos conseguir construí-los. E se hoje as perspectivas para o futuro nos preocupam e parece que não temos muitas opções de caminhos, talvez o ponto de partida para mudarmos isso seja simples, vamos começar pela imaginação.
Ou seja, precisamos treinar conscientemente nossa habilidade de imaginar cenários fora de paradigmas pré-definidos, ou de identificar pistas ou sinais de fenômenos que não pertenciam a esses modelos pré-existentes. E o ato de tornar essa habilidade algo consciente é o início da alfabetização para futuros, ou futures literacy.
Alfabetização para futuros
Essa nova habilidade é essencialmente movida pela imaginação, e pode ser aprendida e treinada. Não tem o objetivo de nos capacitar para planejar rigorosamente, prever ou controlar o futuro. Através dela aprendemos sim a visualizar possibilidades mais amplas e a abraçar as mudanças, as diferenças e a complexidade da realidade, nos desligando de métodos e lentes deterministas. Abrindo mão da ilusão de controle. É aceitando a incerteza que nos tornamos mais criativos para desenvolver estratégias e lidar com os cenários. Buscamos clareza no lugar de certeza.
Uma pessoa alfabetizada para futuros é aquela que desenvolveu a habilidade de interpretar sinais emergentes e, a partir deles, visualizar e facilitar a coconstrução de futuros desejáveis. Por isso a importância das visões. Quando entendemos que todas as pessoas podem ser agentes ativos nessa coconstrução, passamos a nos apropriar de forma mais efetiva desse poder.
Riel Miller, Head of Futures Literacy na Unesco, faz o seguinte paralelo: a disseminação da alfabetização junto da revolução industrial foi um grande salto para o desenvolvimento nos últimos 200 anos. A alfabetização para futuros seria o salto necessário para processarmos os novos tempos.
Além do nível individual, que já é capaz de gerar um grande impacto, com o tempo a democratização da alfabetização para futuros e o crescente diálogo sobre futuros desejáveis poderá enfim nos ajudar a impactar estruturalmente esferas importantes como saúde, educação e meio-ambiente. O engajamento dos governos, grandes instituições e empresas será, é claro, imprescindível para isso.
Mas precisamos iniciar em algum lugar, certo? Apenas agora, com a minha própria alfabetização para futuros, pude entender como já tive uma imaginação um tanto limitada pelas ideias vigentes, um estreitamento que influenciou muitas das minhas visões e decisões. Hoje me sinto capaz de imaginar futuros mais amplos, e principalmente, aceitar a falta de controle e certeza. Tenho mais clareza das minhas habilidades para navegar pelo que virá, e para introduzir no presente os primeiros passos do futuro que eu quero. Pode ser pouco, mas é um começo.
Hoje a alfabetização para futuros está ainda um tanto restrita às pessoas e instituições que atuam com future studies, disciplinas que tiveram sua origem nas agências governamentais pós segunda guerra mundial e há décadas foram adotadas também pelas grandes empresas. Mas agora, parece que finalmente essa habilidade pode se disseminar num nível também individual, e nos ajude a superar os desafios atuais.
Como aprendê-la?
Não há um padrão ou uma metodologia única para esse letramento. Existem algumas instituições e programas ao redor do mundo, entre elas a Singularity University, Institute for The Future, TIP, MIT e Unesco. No Brasil temos empresas que trabalham de diversas formas distintas com futuros e alguns cursos livres.
Deixo abaixo alguns links para quem quiser saber mais:
:Artigo: O que é ‘Futures Literacy’ e por que é importante?
Artigo: Lendo o futuro — Ou por que essa é hora ideal de repensarmos nossos amanhãs imaginário
Livro: Transforming the Future: Anticipation in the 21st Century (English Edition)
LUCIANA RUY
Graduada em comunicação social, pós-graduada em marketing e estudante de psicologia. Possui background de gestão de contas e produção audiovisual. Ao longo de mais de 10 anos de atuação no mercado de comunicação passou por agências como DM9Sul, W3Haus e Escala. No mercado audiovisual, foi sócia de uma produtora, atuando na direção de produção. Nos últimos anos tem voltado seus estudos para a necessidade da união dos avanços na área da psicologia com as demandas de gestão de equipes na era digital. Hoje atua na Aerolito como Business Developer, gerindo desde a concepção até a produção e comunicação dos projetos B2C.