Capítulo 1
Teoria x Prática
Um dos grandes embustes sobre criatividade é o conceito de “estar inspirado”. A gente é levado a pensar que, se somos criativos, quando a inspiração vier, iremos derramar nossas ideias por aí. Quando, na verdade, o fluxo de colocar a ideia pra fora é parte fundamental do processo criativo. Quantas ideias estão lindas na cabeça, mas não resistem ao docx ou ao PSD?
“Na teoria não há diferença entre teoria e prática. Na prática há.” – Yogi Berra, jogador de beisebol
É na hora de escrever, desenhar, rabiscar, contar pra alguém, registrar, esboçar, é nessa hora que a ideia toma forma. Todas essas ações ativam áreas diferentes do nosso cérebro e, por isso, muitas vezes a ideia clareia, desmorona ou muda totalmente quando colocamos em prática. A ideia sai do conforto e da proteção da nossa mente e é submetida à crueldade do mundo exterior.
“Toda poesia ruim é fruto de um sentimento genuíno.” – Oscar Wilde, escritor, poeta e dramaturgo
Caderninho
Enquanto estamos privados de nossa vida social, colocar ideias em prática pode ser um escape e, ao mesmo tempo, uma forma de produzir e aprender. Dá pra iniciar projetos que a gente sempre quis, dá pra inventar algo novo, dá pra simplesmente exercitar a criatividade. O cérebro também precisa de academia.
E essa é a primeira sugestão prática: tenha um caderninho de ideias sempre à mão. Ou mais de um, caso você sempre esqueça onde deixou as coisas (eu tenho quatro). Ah, mas eu uso o Google Keep. Beleza, funciona. Mas tenta o caderninho também. Lembra que desenhar, mesmo que toscamente, estimula uma área diferente do teu cérebro. E cria um espaço que é só teu, sem alerta de mensagem do grupo.
Ao registrar uma ideia no caderninho, a gente se obriga a prestar mais atenção e submete nossos pensamentos a uma avaliação e refino. Com o tempo, desenvolvemos uma postura de Sherlock na cena do crime, observando tudo e anotando. Isso alimenta a curiosidade.
Eu sou adepto do caderninho há tempos. Recentemente, ouvi novamente o Charles Watson* falar sobre criatividade. E ele disse algo que me deu um grande alívio:
“O caderninho não é pra ler de novo no futuro, mas pra mudar a relação que temos com a ideia agora. Não deixem virar objeto de fetiche. Não fiquem com pena de escrever. Escrevam tudo, mesmo que fique bagunçado ou feio.”
O caderninho é um espaço de reflexão, não de execução. Então, relaxe, rabisque, anote, esboce e desenhe. Não só pra expressar, mas também pra compreender.
*Charles Watson é um artista, professor da Escola do Parque Lage, mentor de diversos expoentes brasileiros das artes e se tornou uma autoridade sobre criatividade no Brasil – embora seja escocês.
Capítulo 2
Desenhar é pensar
É comum entendermos “pensar” como o processo de conectar palavras que estão dentro da nossa cabeça. Mas pensar é muito mais do que isso. Envolve diferentes atividades cognitivas em áreas distintas do nosso cérebro que se relacionam. Ações como um desenho, ou simplesmente o rabisco, estimulam o nosso córtex pré-frontal e ajudam a desenvolver a criatividade. Além de registrar, um desenho ajuda a observar.
“Aquilo que não desenhei, eu não verdadeiramente vi. Quando desenhei algo ordinário, percebi o quão extraordinário era.” – Frederick Franck, pintor e escritor de mais de 30 livros sobre budismo
Desenhar também é uma forma de exercitar ideias: fazer para pensar. O artista William Kentridge, conhecido por suas gravuras e filmes de animação, diz que “o desenho é um teste de ideias; uma versão do pensamento em câmera lenta”. Já Richard Serra, prestigiado escultor norte-americano, diz que para desenhar “você tem que prestar atenção em todas as coisas, o tempo todo. A arte é sobre prestar atenção”.
O desenho acima representa a diferença de diâmetro entre a Terra e o Sol. Apesar de muito simples, é muito eficiente para explicar o que com palavras é muito díficil. Não precisa ser um grande desenhista pra usar o desenho como forma de pensar.
Pensamento com rabo
Quando desenhamos, enquanto uma linha evolui no papel, ela deixa um rastro. É uma forma de cristalizar os pensamentos que estavam passando rápido pela nossa cabeça e iriam embora em alguns segundos. E aí, no momento em que desenhamos, nos transformamos em observadores de algo que agora é concreto.
“Não é que você tem que ser especialmente perceptivo para adotar esta prática. É que adotando esta prática, você se torna mais perceptivo.” – Charles Watson
E pra retomar a discussão do rabisco à mão livre versus computador, o célebre arquiteto high-tech, Renzo Piano, defende que “ao desenhar à mão, o movimento que fazemos passa muito mais nuances para o córtex cerebral do que no computador”. Fazendo uma analogia que um quarentener entende bem: é mais ou menos a diferença entre cozinhar no fogo e cozinhar no micro-ondas.
Esboço
Na minha atividade diária, criei um costume de fazer storyboards à mão de todas as apresentações e até dos meus textos. É uma forma de organizar o pensamento. E, mais do que isso, de desenvolver as ideias. Abaixo está o storyboard deste próprio texto (inception) – onde é possível ver, inclusive, que sobrou assunto e vou ter que continuar em um próximo capítulo.
E pra fechar o capítulo, mais uma frase do Charles Watson que me identifiquei bastante e vai motivar uma boa limpeza na minha sala assim que o isolamento acabar.
“Esboço não é uma versão pequena do que você vai fazer grande depois. É uma forma de internalizar algo, de criar intimidade. Depois que você já internalizou, pode jogar fora.” – Charles Watson
Capítulo 3
Repertório x Referências
Quando discutimos sobre atividades que envolvem a criatividade, é comum ouvirmos sobre a importância de consumir referências e de construir repertório. Pensando sobre a diferença entre os dois conceitos, cheguei à seguinte conclusão, sem qualquer base formal ou acadêmica:
Repertório é o que acumulamos ao longo da vida, fruto das nossas vivências, interesses e curiosidades.
Referência é o que buscamos com uma finalidade específica para empregar a curto prazo em nossos projetos e atividades. Muitas vezes usamos nosso repertório como referência.
Referências são fundamentais, mas já vivemos imersos em um grande caldeirão repleto delas chamado internet – que está a nossa disposição o tempo todo. E o ritmo das coisas está tão acelerado que só vamos lá e nos servimos uma porção para consumo imediato.
Para aumentar nosso repertório, precisamos explorar outros lugares, que às vezes parecem distantes do nosso campo de atuação. Não é sobre buscar soluções para os problemas criativos atuais, mas sobre encher a despensa com mantimentos que nos permitam preparar diferentes caldos no futuro.
Repertório é diversidade
A evolução é um bom exemplo. A teoria da seleção natural de Charles Darwin é baseada no que podemos chamar de gene inútil. Aquele gene ou característica que em um momento não serve pra muita coisa, mas, quando mudam as condições externas, pode ser decisivo para a sobrevivência. Biodiversidade é o repertório da natureza.
“Biodiversidade é a possibilidade de ter possíveis inúmeras respostas para problemas que ainda não foram formulados.” – Richard Dawkins, biólogo evolutivo e escritor britânico
Muito distante? Vamos aproximar o zoom. Pensem agora em diversidade de pessoas. Sem conhecer o problema, temos mais chances de ter respostas diferentes em um grupo homogêneo de pessoas ou em outro com grande diversidade (no sentido amplo do termo)?
Serendipidade
Esta palavra meio trava-línguas ganhou importância nos últimos tempos. O Steven Johnson fala bastante sobre ela no excelente “De onde vem as boas ideias”.
Serendipidade é o nome que se dá às colisões aleatórias feitas pelo nosso cérebro, que criam novas conexões entre informações que já estavam ali.
Os sonhos, por exemplo, reconectam neurônios de maneira caótica, possibilitando novas formas de explorar percepções, criando novos insights sobre um palco que estava armado em nossa cabeça. E aí gera coisas do tipo: você e seus amigos em uma festa com o Mandetta e o MC Kevinho, na casa da praia dos seus avós.
Porém, mesmo quando acordados, a nossa atividade cerebral varia entre períodos de sincronia de fase, em que os neurônios pulsam no mesmo ritmo, e outros períodos de caos. No caos é que surgem novas conexões, mas é preciso existir um contexto prévio ordenado. Tudo a ver com processo criativo, certo?
E agora imaginem a diferença que faz ter um repertório vasto de elementos para criar essas novas combinações e gerar ideias originais.
Invista no repertório
A quarentena é um bom momento para investir na busca por um repertório mais diverso. Eu lembro de uma dica que ouvi de um professor e que pra mim funcionou: “se apaixonem por um assunto, devorem tudo e depois partam pra próxima”. Nessa batida, que li um monte de livros sobre evolução, por exemplo, que volta e meia cito textos por aí. Mas esse é só um dos jeitos de construir repertório, cada um pode encontrar o seu.
Texto e ilustrações toscas por Zé Pedro Paz, sócio e CCO da DZ Estúdio.
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MDS, que artigo, estou simplesmente apaixonada, escrava outros.
Obrigado! Essa é a primeira parte, logo vem mais por aí :)