“O algoritmo do facebook precisa de alguns likes seus para te conhecer melhor que seus colegas, outros tantos likes para te conhecer melhor que seus amigos íntimos e família, e só mais alguns para te conhecer melhor que você mesmo.”
Yuval Harari
Foi essa frase de Yuval Harari (professor israelense que virou escritor/celebridade com Homo Sapiens) que me fez pensar como isso se aplica na música que ouvimos hoje. Nunca fui do tipo que caça discos raros em sebos secretos, tento não me importar muito com o que está nas paradas de sucesso, e pra ser sincero, ainda gosto mais da música produzida há 30 anos atrás do que da música produzida atualmente. No entanto, a curiosidade aguçada por novos sons, estéticas e movimentos sempre esteve presente no meu DNA, e gosto de pensar que tenho um vasto conhecimento musical graças a um pai bastante musical e amigos muito mais antenados do que eu.
Há cerca de 5 anos, depois de muita resistência e até um pouco de preconceito, me rendi totalmente (e tardiamente) as plataformas de streaming. Pra mim, foi uma revolução, algo que só consigo comparar com as descobertas musicais da adolescência, quando ir a lojas de CD’s era um programa de domingo à noite (se você tem mais de 35 anos, você me entende).
Assim como qualquer plataforma digital moderna, as plataformas de streaming obviamente não fogem da razão de ser das big techs – o algoritmo. Pra ter acesso (gratuito ou pago) a praticamente todas as músicas já produzidas nesse universo, você fornece algumas informações sobre você. Nome, idade, CPF…pra cada um de nós, são dados triviais. Para as big techs, é mais um micro pedaço da torta que, interligada a outros, somam bilhões de dólares de valor de mercado. E assim começa um relacionamento interdependente entre um ser pensante e um algoritmo com inteligência artificial. Quanto mais você ouve, quanto mais você clica, quanto mais você pula uma faixa, mais o algoritmo te entende.
Impossível não se impressionar com o número de acertos do algoritmo, uma vez que ele tem a quantidade suficiente de dados para te oferecer uma seleção musical. Em poucos meses, o Spotify passou a ser meu mentor musical, e foi através dele que fiz algumas das descobertas mais incríveis da minha jornada musical até hoje.
Será que fui eu quem descobriu mesmo?
Comecei a pensar nos primeiros capítulos do excelente “Last Night a DJ Saved My Life”, livro que conta a história dos primórdios da música gravada, com um efeito colateral que proporcionou o surgimento de um novo hobby, foi se tornando uma habilidade com relativos sinais de maior ou menor talento, e finalmente virou profissão – o DJ.
Dos primórdios do gramofone até o começo da revolução digital, era o papel do DJ pesquisar, filtrar, redescobrir o passado e nos guiar rumo ao futuro da música, envolvendo seus ouvintes numa jornada musical com começo, meio e fim. Nos mais de cem anos de música gravada, a figura do DJ foi uma das grandes responsáveis pelo surgimento de novos estilos ou novas estéticas musicais, já que a colisão entre gêneros e até o uso de técnicas de produção específicas dificilmente teriam acontecido, não fosse o deliberado “mau uso” de algum DJ maluco. (para ficar no óbvio, o Hip Hop, provavelmente o estilo mais popular da atualidade, tem suas raízes nos DJ’s do Bronx, que tocavam partes instrumentais de discos de Funk, Jazz e de Disco, enquanto um MC fazia rimas ao vivo por cima dos discos).
Quando a pandemia deu as caras por aqui no ano passado, comecei a reorganizar minha biblioteca de música, e assim como faço periodicamente, procurar novas fontes para beber. Como que por uma coincidência, fui apresentado ao trabalho da DJ inglesa Sam Divine. Sam é uma das caras da Defected, gravadora de House da Inglaterra que ficou conhecida por um certo puritanismo dentro do mundo da música eletrônica.
Eu achava que já conhecia bastante de House, pois meus últimos anos foram dedicados a um entendimento profundo do estilo, mas bastou ouvir alguns shows do rádio da DJ pra ver que o buraco é mais embaixo – foi como ir a um restaurante Michelin e deixar o Chef te oferecer a especialidade do restaurante. Pode ser que você não goste de alguns pratos, pode ser que você tenha que sair da sua zona de conforto em alguns momentos, mas no final da experiência, você já não é mais a mesma pessoa. Essa sensação, que tantos outros DJ’s replicam, também é reproduzida diariamente por qualquer um de nós. Basta colocar músicas que marcaram fases da SUA vida, uma seguida da outra.
Isso, plataforma de streaming alguma consegue fazer.
Pra mim, essa ainda é a maior diferença entre o algoritmo e a experiência humana. Pode ser que em pouco tempo isso mude, mas a música (felizmente) ainda está protegida do algoritmo.