Em “Meu Coco”, Caetano Veloso atualiza suas raízes

De Billie Eilish à Mestrinho, as referências de Caetano são seu raio-x pra olhar por dentro da história.
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Em "Meu Coco", Caetano Veloso atualiza suas raízes
disco mais recente do artista, lançado na sexta-feira (22)

Zabé de Loca foi uma instrumentista da Paraíba, só descoberta aos 79 anos. Tocadora de pífano, um tipo de flauta popular no Nordeste, Zabé morou em uma caverna durante 25 anos – daí o apelido que virou sobrenome – e teve seu talento reconhecido nacionalmente. 

Zabé é uma das muitas vozes que falam ao “coco” de Caetano Veloso em “Meu Coco”, último disco do artista, lançado na sexta-feira (22). Dita como uma vinheta pra ligar duas partes, o nome de Zabé faz verso com João Gilberto, Leila Diniz, Bethânia e Elis, em uma confluência poética e rítmica que move Caetano até hoje. “Os nomes dizem mais do que cada uma diz”. 

A mistura é sua partitura. As referências são seu raio-x pra olhar por dentro das histórias, culturas e pessoas que fazem o Brasil ser uma pátria itinerante. 

O próximo destino do passeio é Ciclâmem do Líbano, uma erótica canção sobre dois seres que se amam com a benção divina. Se na composição o Líbano é um país ou não, o mistério é o “véu dulcíssimo, e a flor em carne” que não interrompe o amor entre os dois, mas o consola. 

Em "Meu Coco", Caetano Veloso atualiza suas raízes

O Líbano é um lugar histórico, mas agora o mundo é feito de um quarto adolescente. “Anjos Tronchos” mostra um Caetano atento às revoluções e de onde elas surgem. Ora um espião, ora um crítico, o artista vê o “Vale do Silício” como o lugar que torna o vício virtuoso, mas não o libera de toda mazela que vem junto disso. “Agora a minha história é um denso algoritmo, que vende venda a vendedores reais”.

Caetano vai da Primavera Árabe, a primeira revolução nascida do Twitter, até uma piscadela para a eleição de Trump e Bolsonaro no verso “palhaços líderes brotaram macabros”. 

É uma canção moderna, enérgica, com uma levada de rock que firma a visão do disco como um todo, a meu ver. Se na primeira audição, “Meu Coco” parece uma reunião de canções compostas em meio ao caos cultural, social e financeiro em que vivemos, num segundo momento fica claro ser mais um registro de como a gente vive hoje. Vários perfis em redes sociais, informações vindas de diversas fontes, ao mesmo tempo, sem que haja uma unidade, ainda que tudo esteja conectado à mesma rede. 

Caetano não bota Billie Eilish nessa caldeira por modismo. 

Em "Meu Coco", Caetano Veloso atualiza suas raízes

O lindo piano rhodes que puxa “Não vou deixar” parece um lamento íntimo, nunca desiludido. Entra como um evocação à energia do povo brasileiro que precisa constantemente lembrar da sua glória, “da sua fama de bacana, do nosso drama e da nossa pinta” pra não esquecer que nós podemos, sim, mudar. “O vovô tá nervoso” é talvez o flagrante de alguns dos seus netos diante de um homem que mesmo aos 79 anos ainda quer viver num país pleno da sua glória. É uma das mais lindas de “Meu coco”.

“Autocalanto” foi feita para o neto. E provavelmente por pensar nos netos que “Enzo Gabriel” flutua com tanta facilidade. A música cita o nome mais registrado no Brasil em 2018 (que ano!), e tem um quê divino, como se Enzo Gabriel fosse um anjo que observa o país de longe, não para salvá-lo ou para anunciar boas novas. Enzo Gabriel vai precisar de muito muque pra mudar as coisas como elas estão hoje. Profética e profana, a música encerra de um jeito definitivo: “Enzo Gabriel, sеi que a luz é sutil Mas já verás o que é nasceres no Brasil”. 

Tambores guiam seus falsetes em “GilGal”, e Caetano volta a invocar à Música; ao espírito que passeia pelos tempos históricos até que o assalte com a inspiração. O trocadilho do título é puro Caetano: gilgal é um popular lugar bíblico onde, pela primeira vez, acamparam os israelitas, depois de terem atravessado o rio Jordão. O amigo e a irmã também são um acampamento onde ele acha abrigo, não? 

Essa ressignificação que tanto participou de sua música, vem com tudo em “Você-Você”, um fado português. Ainda que Caetano relembre da matriz histórica da colonização, é o samba que faz parte da nossa independência. “Sem samba não dá” bota o ritmo pra conversar com o sertanejo e o baiano lembra de uma galera que faz sucesso hoje. É um jeito dele de lembrá-los, quem sabe, que o passado precisa ser consultado, admirado no que há de melhor e também servir como referência para acalmar o futuro. Bote o que quiser. Descubra formas, se atualize.  Use a sanfona de Mestrinho. Cite até Billie Eilish! Mas, sem samba não dá. 

E se João Gilberto falou, quem é que discorda? 

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