Medeia se apaixona por Jasão. Completamente entregue, ajuda o homem na tarefa de achar o Velocino de ouro, uma espécie de roupa de lã que dava poderes. Mas, Jasão dá um pé na bunda de Medeia pra ficar com uma princesa, e ela prepara uma vingança.
A história grega serve para escoar a peça Mata Teu Pai, texto de Grace Passô e dirigida por Inez Viana, pelos tempos modernos. Uma mulher traída, trocada e humilhada, não é um mito histórico, é uma rotina contemporânea.
O que o texto fez em 2017, data da primeira montagem, foi identificar o elo atemporal da dor feminina e do privilégio patriarcal que modelou a cultura como a conhecemos hoje.
Em 2022, Medeia é interpretada com muita beleza pela cantora Assucena, uma mulher trans. Só esse fato seria suficiente para jogar o mito em outra dimensão.
Transformada em ópera-balada, Mata Teu Pai incorpora músicas, sons e outras mulheres trans ao elenco para ampliar o tamanho do buraco que o patriarcado nos enfiou. Sem didatismo e com muita poesia, a mensagem é distribuída ao longo do espetáculo de forma emotiva. Texto e direção sabem pra onde ir, e o caminho é diferente do mito grego, ainda que também o espelhe.
Na história de Eurípedes, Medeia mata os filhos e sequer deixa o corpo para Jasão velar. É vista como uma louca. Em Mata Teu Pai a vingança é coletiva, é instrumentalizada por um saber de que não importa a época, a comunidade, ou o país, as mulheres sempre serão estrangeiras porque a terra a qual elas se referem, sentem saudades, é uma terra utópica; é uma espécie de morada futura, um lugar onde elas poderiam viver com paz.
A diretora, Inez Viana, cria uma dança cênica poderosa. O público não fica em frente ao palco, e sim ao redor dele. As atrizes passam por nós, e vão, lentamente, aumentando a fervura da encenação.
É lindo o momento em que Assucena canta e dança usando um papel laminado como par. O jogo de luzes é tão imersivo, que provoca um tipo de frenesi. O trabalho é fortalecido pela trilha sonora ao vivo criada pelo Barulhista.
Dá pra colocar Mata Teu Pai na prateleira de outras encenações icônicas, como Gota D’água, peça de Chico Buarque e Paulo Pontes, a genial Gota D’água Preta, feita só com elenco negro, que Jé Oliveira levou aos palcos em 2019, e Gota D’água [a seco], com Laila Garin e Alejandro Claveaux.
Se cada um dos espetáculos mira em um alvo, a atual versão de Mata Teu Pai consegue o feito de distender o mito grego para uma visão microscópica. A peça é uma super lente de aumento para ver todos os germes, vírus e doenças que a cultura masculinizada provoca, ao mesmo tempo em que pluga os temas das outras encenações sem perder a conexão com o texto de Eurípedes.
Esse teleporte faz com que o espectador não sinta a dor de ser uma mulher, trans ou cis, preta ou branca – esse tipo de sofrimento é inviolado. Entretanto, a montagem dá espaço para que o público compreenda parte do desespero de não ser um homem em uma sociedade; de compreender o tamanho do surto que é ser taxado de herói quando na verdade nem Jasão, nem qualquer homem, o é. Mata Teu Pai expõe as covas abertas que aguardam as futuras vítimas de feminicídio, homofobia ou assassinato. É um espetáculo que cria uma linha do tempo do horror ficcional e real ao mesmo tempo, principalmente ao manter de pé figuras como Luiza Bairros, uma importante liderança brasileira.
Pra mim, outro ponto que viabiliza o espetáculo como uma lente de aumento para os dias de hoje é a forma como as vizinhas, interpretadas com vigor por Eme Barbassa, Joana dos Santos, Warley Noa e Aivan, traduzem a sororidade – essa palavra por si mesma estrangeira – como um significado super distante da realidade. A cubana, a paulista, a mulher árabe, a vizinha, são personagens somente mencionados, mas espelham mulheres que operam em lógicas diferentes. A paulista, por exemplo, é crítica direta à sociedade elitista.
O que é magistralmente bem feito é a forma como essas personagens-fantasmas vivem no espetáculo. A pontaria de Grace Passô e Inez Viana não tem um alvo só. O centro do painel do dardo é o centro de um furacão por ser a paz também um privilégio.
Se há muitas camadas, por baixo da epiderme do espetáculo, uma figura é evidente para todos. Em Mata Teu Pai, o nome de Jasão é trocado por “seu pai”, “o pai que só existe na ausência”.
Em 2021, 53,9 mil crianças brasileiras não tiveram o pai reconhecido na certidão de nascimento.
Medeia não é só mulher, é símbolo.
E Jasão não é herói. Ele é só homem.
Mata Teu Pai está em cartaz em São Paulo, no Sesc Pompeia, até o dia 09 de setembro.