Se existe algum modelo de caixa de som capaz de se sobrepor ao berro dos mais de 45 mil fãs que estiveram no Allianz Parque, em São Paulo, certamente ele não foi importado para o show do Harry Styles. Minha cabeça só doeu após dois shows: The Who e Guns N’ Roses no Rock in Rio, em 2017, e hoje.
A primeira de uma série de cinco apresentações que o músico vai fazer no Brasil com a Love on Tour, foi aberta debaixo de um toró com a boa Music for a Sushi Restaurant, do último disco, Harry ‘s House. A chuva não atrapalhou. “Deixa o cabelo dele mais bonito”, em um raríssimo cochicho de uma garota de mais ou menos de uns 17 anos que assistia ao meu lado.
Golden, Adore You, de Fine Line, o segundo álbum, e Daylight, boas músicas, embora sem frescor, foram escolhas corretas para começar o show.
Um pouco antes dele subir ao palco, para se distrair da chuva, o público entoou Bohemian Rhapsody, do Queen. É curioso. Não que o figurino de Harry Styles seja propositalmente inspirado no modo como Freddy Mercury se vestia em Wembley, com camiseta cavada e calça de academia e tênis, mas a conexão entre as duas coisas apareceu menos tímida do que eu imaginaria. Talvez, fosse até um conforto.
Num show lotado de crianças fazendo trenzinho como coreografia e adolescentes usando faixa no cabelo, Harry insiste em ir quase em uma contramão. Bota o guitarrista solar longamente em She, duetando com o piano; torna a melancolia de Matilda mais crua e menos romântica, e segue numa toada muito charmosa com Lights Up. O ziriguidum de Adoniran Barbosa em Trem das Onze serviu de colchão pra Late Night Talking. E a forte presença da banda amolece parte das leis comerciais que regem o cenário pop da sua geração.
Fãs passam mal? Harry para o show. Pede barulho (muito barulho) ao público para apresentar sua banda e depois faz o mesmo com o backstage. Em dado momento, diz “vocês ainda estão com a gente?” em vez de “comigo”. É respeitoso. E um comportamento diferente de alguns colegas do pop que imperdoavelmente se apresentam usando só um violão e sintetizador, ou que, quando aparecem, ignoram a plateia.
Harry não despreza a sua ex-boyband, One Direction. No momento certo, da cenografia aos arranjos, o passado é incorporado com a pretensão de devolver algum tipo de sonho aos fãs. What Makes You Beautiful vira um frenesi desgarrado de qualquer responsabilidade e faz ótima transição para Watermelon Sugar, que mantém a animação do estádio inteiro no 220.
Pudera. O público é quase todo feito de meninas abaixo dos 20 anos. Os gen. Z, nascidos entre a segunda metade dos anos 1990 até o início do ano 2010, estão no foco pela quebra que provocam: são conscientes, em certa medida são politizados, e não fazem ideia do que é internet discada. Algumas coisas chamam atenção. Celulares quase sempre empunhados em lives com pessoas que não estão no show, gravações de músicas inteiras, uma quantidade imensa de aplicativos nos telefones que eu bisbilhotei, e uma vontade tremenda de cantar mais alto do que o próprio Harry. Zero cerveja mesmo com a Budweiser entre os patrocinadores. E juro que não ouvi nenhum palavrão!
Um dos shows mais impactantes que vi na vida foi justamente no Allianz Parque, em 2018: Roger Waters, logo depois do primeiro turno das eleições.
Agora, uma neblina colorida cobria o estádio. Depois de meses ouvindo o bis ser rompido por algum tipo de manifestação política, acompanhada da ameaça pouco democrática de que as coisas poderiam ficar muito piores em 2023, escutar essa galera puxar “olê, olê, olê, olá, Harry, Harry!” pra, em seguida, testemunhar o próprio músico levar os falsetes de Sign Of The Times, enrolado em uma bandeira do Brasil, é um verdadeiro alívio. E a canção é realmente muito bonita. Momento cheio de emoção que a chuvona só entregou a inspiração de Harry: ele usa a mesma harmonia de Purple Rain, clássico absoluto do Prince. Fora que a dinâmica é bem parecida. Pra mim, isso é ponto a favor!
Na sequência, vem a dançante As It Was e o encerramento definitivo. Ao vivo, Kiwi, um dos grandes sucessos do primeiro álbum, é tocada com braveza. Ganha o mesmo pulso de algo que o Bon Jovi fez em seus melhores momentos nos anos 2000. Das melhores do show.
Curtinha, a apresentação tem pouco mais de uma hora. É uma pena. Eu culpo muito mais o TikTok, que obriga os músicos a encaixotar suas canções em menos de três minutos, do que o repertório do cantor talhado em três álbuns. Mas, não dá pra fugir. A plataforma serviu para espalhar quase tudo que os fãs captaram do show.
Nas outras duas vezes em que esteve no Brasil, as passagens de Harry de Styles foram modestas. Agora, o cenário é o de um verdadeiro popstar.
O passado de boyband atrapalha a ambição que o britânico mostra? Olha, ótimos músicos, como Justin Timberlake e Robbie Williams, saíram delas. O Jackson 5 deu ao mundo o Rei do Pop. Os irmãos Oasis tentam até hoje, sem o mesmo sucesso, é verdade. E até a carismática falta de noção que bota os Beatles nesse balaio tem resguardado seu ponto de vista.
Dito isso, onde Harry Styles estará daqui há 10 anos? A julgar pela fonte oitocentista onde ele abasteceu seus últimos trabalhos, a postura corretíssima de palco, o esforço para criar álbuns coesos, e a tentativa de explorar outros formatos – como os dois filmes recém-lançados – munido do grito apaixonado da plateia que ele arrasta com precisão, não é preciso avistar tão longe. Harry Styles é.
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Wow!! Eu estava lá e foi isso tudo mesmo!
Um show incrível em que a gente se sente abraçado pelo Harry mesmo estando de longe. De fato melhora o nosso dia, mesmo após um perrengue de dia de chuva! Valeu cada segundo!!!
Este texto me fez repensar se não deveria ter comprado um ingresso para ir ao meu primeiro show geração Z também! Análise Genial!
Excelente review!