“Estória” é tech

Abra espaço para o disruptivo, rentável, escalável, intuitivo e milenar poder do storyteching
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Na foto de abertura desse artigo você pode ver a Camila, minha esposa, lendo “O Grúfalo”, de Julia Donaldson e Axel Scheffler, para nossa filha, a Áurea. E, apesar de nossa pequena leitora estar fisicamente ali, ela não está presente, está em outro lugar. Eu acredito que esteja caminhando ao lado do Grúfalo, ou, em termos modernos, que esteja na “mixed-reality”. E o único sistema operacional capaz de fazer isso sem precisar de treinamento, instalação ou energia é o que o costumamos chamar de storytelling.

Dei muita aula sobre esse tema na vida, mas sempre torci o nariz pelo uso da palavra em si. Ela foi introduzida no mercado de comunicação – que ama anglicismos – como um remédio milagroso. Storytelling ainda hoje é tido como cura para qualquer coisa. A apresentação está ruim? Mistura storytelling na água. O conteúdo não engaja? Storytelling de doze em doze horas. A marca está precisando de renovação? Passa storytelling que sara.

Longe de mim criticar curandeiros ou médicos. Meu problema é com o uso indiscriminado desse rótulo genérico para coisas que, na verdade, já têm outro nome, como posicionamento, propaganda ou narrativa. Me lembra, inclusive, o excesso de uso da palavra “metaverso”, que nesse último ano substituiu todos os termos corretos em prol de vender soluções (milagrosas?) para quem queira estar na crista da onda do universo.

“Crista da onda” no cringeverso quer dizer “hype”.

O storytelling, ou melhor, os storytellers têm realmente uma solução poderosa nas mãos para resolver inúmeros problemas, e com certeza muitos profissionais a usam com os devidos cuidados. Entender a etimologia da palavra e o verdadeiro poder que ela tem nos ajuda a melhorar seu uso no dia a dia.

Vamos começar do começo: storytelling é uma palavra composta por um substantivo, “story”, e um verbo no gerúndio, “telling”, indicando um ato contínuo, uma ação constante. Considero essa segunda parte da palavra uma referência à plataforma, ao veículo ou ao formato escolhido, mas não vou me aprofundar neste ponto – para isso, volte duas casas e leia “Por que expandir histórias” . Aqui, quero focar somente na primeira parte e dar atenção à palavra “story”, que vou traduzir como “estória” e não “história” para dar a devida reverência ao tema.

Em tempo: como definido na Wikipedia, “estória é um neologismo proposto por João Ribeiro (…) em 1919, para designar (…) a narrativa popular”. Apesar de nunca figurar na forma culta, já adotei o uso dessa palavra muitas vezes em palestras e aulas, pois acredito que vale destacar a singularidade que a grafia lhe dá.

Permita-me, afinal, essa licença poética.

Estória, portanto, é o que realmente se busca quando se quer trabalhar com storytelling. Mas o que é estória? O site The Biology of Story tenta responder essa pergunta. Navegando por ele você irá encontrar um item chamado “princípios”, e nele destaco o seguinte termo: “nem todas as narrativas são estórias”. Basicamente, os autores dizem que um conteúdo precisa de três coisas para evoluir de uma coisa pra outra: intenção, começo-meio-fim e significado. Fora isso, continua sendo uma narrativa, mas não uma estória.

SPOILER ALERT! Tyrion Lannister, um dos personagens mais amados e importantes da série da HBO “Game of Thrones”, fala em seu discurso épico no episódio final: “Não há nada no mundo mais poderoso que uma boa estória. Nada pode pará-la”. Esta frase, colocada no nosso contexto atual, é ainda mais verdadeira.

Isso quer dizer que a maior ferramenta de evolução humana, ou melhor, o maior conjunto de ferramentas, técnicas, processos e métodos é a estória; talvez um dos maiores domínios da atividade humana. E se estória é essa técnica particular, ou conjunto de técnicas, é por definição uma tecnologia. Estória é a tecnologia que nos tirou das trevas. Estória é sem dúvida a tecnologia mais democrática usada no mundo.

Se estória é de fato “tech”, por que então não chamar de “storyteching”?

Johnatan Gottschall, no livro “The Storytelling Animal: How Stories Make Us Human”, argumenta que as histórias nos ajudam a lidar com problemas sociais, como simuladores de voo preparando pilotos para situações adversas. Ele se baseia em pesquisas da neurociência, psicologia e biologia para mostrar que quanto mais absorto você está em uma estória, mais muda seu comportamento, que crianças brincam dos mesmos tipos de estórias, não importa sua origem, e que pessoas que leem mais ficção são mais empáticas.

A contação de estórias evoluiu durante nossa história. Conforme nossa sociedade ficou mais complexa, as formas como produzimos e consumimos estórias também ficaram. Não apenas distribuição e formato, mas narrativa, personagens, ritmo e temas. Cada geração e cada povo têm seu conjunto de mitos, normas e desejos que são divididos entre contadores e sua audiência. Sendo nosso planeta uma “aldeia” global, totalmente conectada, essas estórias agora são compartilhadas por todos no mundo quase que diariamente.

Contar estórias com consistência cria contexto, o que traz conexão e gera comunidade. E isso, se usado como uma tecnologia, com regras e normas, é ainda mais poderoso. O comediante Jerry Lewis, quando entrevistado por seu colega de profissão Jerry Seinfeld no programa “Comedians In Cars Getting Coffee”, comparou escrever roteiros à engenharia civil ou à uma cirurgia. Alguns amigos roteiristas, entre eles Davi Kolb, concordam que sentar e escrever um roteiro buscando entreter o público exige muito cálculo e experiência.

Precisamos, para evoluir como mercado, normatizar essa tese tecnológica do universo das estórias. Só assim vamos entender que o criador – tido como o maluco de dons mágicos – é, na verdade, alguém que navega em um mundo prático para construir um outro lúdico. Isso quer dizer que, se você quer fazer a transição entre interromper e entreter, não precisa ter medo, pois a ponte é feita de forma sólida e matemática.

Contar estórias deve ser eficiente, além de relevante. Toda vez que aparecer um remédio mágico chamado storytelling prometendo buscar audiência, lembre-se que tem muito mais por de trás disso. Criar estórias, para entretenimento ou para corporações, não é floreio, mas a mais alta tecnologia digna do Vale do Silício.

Tá bom, você não precisa usar a palavra estória como eu usei por todo esse texto, mas aproveite esse momento para aprender mais sobre storyteching – não só no discurso, mas no seu modelo mental também.

Essa é a minha receita pra você.

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