Grothendieck e o estado criativo solitário

A capacidade de levantar questões diferenciava Grothendieck, mais do que sua capacidade de respondê-las.
Professor speaking in front of a chalkboard filled with mathematical equations, showcasing concepts in algebra and group theory. Professor speaking in front of a chalkboard filled with mathematical equations, showcasing concepts in algebra and group theory.

Há muitos anos estava com um grupo, que incluía o matemático Artur Ávila, almoçando na cafeteria do IMPA. A conversa girava em torno do tema “criatividade”. Em dado momento, Ávila pergunta: “já leu Récolte et Semailles do Alexander Grothendieck?”. Respondi que não. Ávila então, enigmaticamente, completou: “Então leia”.

Por alguns anos deixei de lado o conselho e fui cuidar da minha vida.

No mundo pré-pandêmico, passei muito tempo trabalhando em coworkings, que me atraíam por serem espaços comerciais mais baratos. Confesso, que sempre fiquei com um “pé atrás” com uma das qualidades propagandeadas dos coworkings serem espaços para trocas criativas. Uma ideia em estágio inicial sempre me pareceu muito frágil para ser discutida em grupos grandes.

Pode ser um caso claro de viés de confirmação, mas a posição de pessoas como o Sam Altman, que nunca foram muito fãs de espaços de coworking, como atesta o tweet abaixo de 2015 quando era CEO da incubadora Y Combinator, reforçaram essa convicção pessoal. 

Altman tem ainda uma explicação para sua implicância com coworkings que resume um pouco o meu cuidado com ideias no estágio inicial. Em uma entrevista ao podcast do Tyler Cowen (o link pode ser acessado aqui), ele disse o seguinte (em tradução livre):

“Boas ideias, ou melhor dizendo, grandes ideias, são frágeis. Grandes ideias são fáceis de matar. Uma grande ideia tem seu estágio larval [inicial] e todas as melhores ideias que já ouvi [nesse estágio larval], quando as ouvi pela primeira vez, soaram ruins. Todos nós, inclusive eu, somos muito mais afetados pelo que as outras pessoas pensam de nós e de nossas ideias do que gostaríamos de admitir. Se você é apenas uma dentre quatro pessoas em seu próprio escritório e tem uma ideia que parece ruim, mas é ótima, é possível manter a ilusão [de desenvolvê-la]. Se você está em um espaço de coworking, as pessoas riem de você e ninguém quer ser o último escolhido no recreio. Então você muda sua ideia para algo que parece plausível, mas que nunca vai fazer a diferença. É verdade que os espaços de coworking eliminam as piores ideias, mas existir um filtro para [ideias de] startups é uma coisa terrível, porque também mata as melhores ideias.”.

Esse insight a respeito da necessidade de solidão para desenvolver a criatividade não é exclusividade do mercado de TI. É atribuída a Picasso a frase “Sem grande solidão, nenhum trabalho sério é possível” [1]; a James Baldwin a frase “Talvez a principal distinção do artista seja que ele deve cultivar ativamente aquele estado que a maioria dos homens, necessariamente, deve evitar: o estado de estar sozinho” [2]; e a Bob Dylan a frase “Para ser criativo, você precisa ser anti-social e teimoso” [3].

Esses aforismos dão a impressão de que a criatividade requer que a gente fique sentado sozinho em um quarto para que a mágica aconteça. Minha leitura sempre foi a de que o que esses artistas se referem como “solidão” é o estado mental necessário para que a criatividade flua. É um estado em que a opinião dos outros não os incomoda e de onde é possível alcançar uma sensibilidade tal que facilita o surgimento do estágio larval a que Altman se refere e das perguntas, muitas vezes vagas, inerentes. É um estado criativo solitário.

No final de 2014, Ávila enviou um e-mail para um grupo de pessoas com uma mensagem de três palavras: “Morreu o grothendieck…”. João Moreira Salles resumiu magistralmente o impacto de quem leu o e-mail em artigo publicado na revista Piauí [4]. Basta dizer que nesse mesmo dia comprei os dois volumes de Récolte et Semailles e passei boa parte da última década lendo-os.  

Grothendieck e o estado criativo solitário

Em 1983, Alexander Grothendieck (pronuncia-se “Groutendique”) sentou-se para escrever “Pursuing Stacks” (algo como “Em Busca das Pilhas”). Trata-se de uma carta com 12 páginas para o também matemático Daniel Quillen, seguido por cerca de 600 páginas com notas de pesquisa. O manuscrito pode ser acessado no repositório Arxiv (pronuncia-se “arcáive”) em inglês aqui.  

Grothendieck estava preocupado à época com o que via como um desdém tácito pelo “lado feminino” da matemática, que está relacionado ao que me referi como estado criativo solitário, em favor do teorema acabado. Ao se elevar os teoremas acabados à categoria de meta absoluta, ele sentia que a matemática ficava mais encaixotada. Com isso, o foco do aprendizado matemático se concentrava em fazer o trabalho mecânico de derivar provas em detrimento de aprender a entrar nos estados oníricos onde surge a matemática verdadeiramente original. 

Para neutralizar o movimento em prol dos teoremas acabados, Grothendieck, na década de 1980, decidiu escrever de uma nova maneira: começou a detalhar como o trabalho de um matemático era realizado dia após dia, incluindo aí todos os erros e confusões, os frequentes passos para trás, bem como os saltos repentinos para a frente. Com isso, esperava mostrar para quem se iniciava no ofício como eram dados os primeiros passos à procura de ideias e intuições iniciais. Como dizia, intuições iniciais muitas vezes se provam “elusivas e escapam das malhas da linguagem”. Foi deste modo que escreveu “Pursuing Stacks”.

Vale comentar que o título, “Pursuing Stacks”, se derivou da intuição de Grothendieck de que as pilhas (stacks) são o conceito unificador para uma síntese de álgebra homotópica e álgebra coomológica não comutativa. Em matemática, uma pilha (stack) é a estrutura subjacente das pilhas algébricas, usadas para trabalhar valores em categorias ao invés de conjuntos e fundamental para espaços de módulo

Decidiu então usar essa mesma abordagem reflexiva para escrever um prefácio sobre o tema, sondando não um teorema, mas sua psicologia e a própria natureza do ato criativo. Trocou o inglês pelo francês, sentou-se com sua mente, observando-a enquanto escrevia até conseguir colocar em palavras o que pretendia dizer. Essa empreitada levou 29 meses. 

O tal prefácio, que se agigantou em 2.000 páginas, virou o que conhecemos hoje como “Récolte et Semailles”. O manuscrito foi finalizado em outubro de 1986 e reza a lenda que um de seus colegas, que recebeu uma cópia pelo correio, notou que Grothendieck havia escrito com tanta força que as letras às vezes perfuravam as páginas. Já ouvi uma definição do trabalho como sendo “um pedaço de escrita enervante, fervendo de dor, enrolando-se com insanidade nas bordas”.

Apesar dessa qualidade desequilibrada, ou melhor dizendo, por causa dela, Récoltes et Semailles é um retrato profundo do ato criativo e das condições que permitem o ser-humano ser capaz de se lançar ao desconhecido.

Uma parte importante do texto mostra Grothendieck meditando sobre como estabeleceu contato pela primeira vez com o espaço cognitivo necessário para se produzir um trabalho inovador. Isso aconteceu no final da adolescência. Segundo ele, foi esse contato profundo consigo mesmo, estabelecido entre os seus 17 e 20 anos, que mais tarde o diferenciou. Conta que não era um matemático tão forte quanto seus colegas quando veio para Paris aos 20 anos, em 1948. A sua formação pregressa não era a chave para a sua capacidade criativa. Em tradução livre minha, ele diz:

“Eu admirava a facilidade com que [os demais estudantes] pegavam [os conceitos matemáticos], como se estivessem brincando, [com] novas ideias, fazendo malabarismos com elas como se estivessem familiarizados [com as ideias] desde o berço – enquanto eu me sentia desajeitado, até mesmo um idiota, vagando penosamente por uma trilha árdua, como um boi mudo diante de uma montanha amorfa de coisas que eu tinha que aprender (assim me asseguravam), coisas que me sentia incapaz de compreender[. . .]”

Para deixar claro, se Grothendieck ainda não era o matemático genial que se tornou depois, já era nessa época um excelente matemático. Os seus colegas estudantes, de então, eram os jovens matemáticos mais brilhantes da França, vindos dos melhores colégios do país. Grothendieck, por sua vez, tinha passado a guerra em um campo de concentração em Rieucros, no sudoeste da França. 

Seus companheiros eram, sem dúvida alguma, talentosos e bem treinados. Mas a questão colocada por Grothendieck era que ser excepcionalmente talentoso e bem treinado, a longo prazo, não era suficiente para que produzissem um trabalho inovador. Faltava a capacidade de ir além do contexto em que foram criados. Novamente dou a palavra ao próprio Grothendieck (sempre em tradução livre):

“Na verdade, a maioria desses camaradas que eu considerava mais brilhantes do que eu se tornaram matemáticos ilustres. Ainda assim, na perspectiva de 30 ou 35 anos, posso afirmar que sua marca na matemática de nosso tempo não foi muito profunda. Todos fizeram coisas, muitas vezes belas, em um contexto que já lhes foi apresentado e que não tiveram nenhuma inclinação para perturbar. Sem o saber, permaneceram prisioneiros desses círculos invisíveis e despóticos que delimitam o universo de um certo meio numa dada época. Para quebrar esses limites, eles teriam que redescobrir em si mesmos aquela capacidade que era seu direito de nascença, como era meu: a capacidade de ficar sozinho.”

“A capacidade de ficar sozinho”, novamente ela. Grothendieck havia desenvolvido o seu estado criativo solitário. Durante a guerra, no campo de concentração em Rieucros, uma outra prisioneira chamada Maria o ensinou que um círculo pode ser definido como todos os pontos que estão igualmente distantes de um determinado ponto específico. Essa clara abstração o atraiu imensamente, conta. Após a guerra, tendo apenas uma compreensão limitada da matemática do ensino médio, Grothendieck acabou na Universidade de Montpellier, que não era um centro importante para a matemática. Os professores o desapontaram, assim como os livros didáticos que, segundo ele, não conseguiam nem ao menos fornecer uma definição decente do que queriam dizer com “comprimento”. 

Em vez de assistir às aulas, ele passou dos 17 aos 20 anos atualizando seus conhecimentos matemáticos do ensino médio e elaborando definições adequadas para conceitos como volume e comprimento de arco. Se estivesse em uma boa instituição matemática, Grothendieck saberia que os problemas em que estava trabalhando já haviam sido resolvidos 30 anos antes. Estando isolado de professores e mentores, ele reinventou meticulosamente partes do que é conhecido como teoria da medida e a integral de Lebesgue.

Com a palavra, Grothendieck: 

“Alguns anos depois de finalmente estabelecer contato com o mundo da matemática em Paris, soube, entre outras coisas, que o trabalho que havia feito em meu pequeno nicho [já era] há muito tempo conhecido em todo o mundo [. . .]. Aos olhos dos meus professores, a quem descrevi este trabalho, e até lhes mostrei o manuscrito, simplesmente “perdi o meu tempo”, apenas repetindo algo que “já era conhecido”. Mas não me lembro de ter sentido qualquer decepção.”.

Os três anos que passou trabalhando solitariamente em Montpellier não foram, de maneira alguma, desperdiçados. Foi exatamente o isolamento intelectual que lhe permitiu acessar o espaço cognitivo onde surgem novas ideias. Grothendieck se sentia em casa lá:

“Sem saber, familiarizei-me com as condições de solidão indispensáveis à profissão de matemático, coisa que ninguém pode nos ensinar[. . .]

Para dizer de maneira um pouco diferente: naqueles anos críticos, aprendi a ficar sozinho.

[. . .] estes três anos de trabalho em isolamento, em que fui lançado à minha própria sorte, seguindo orientações que eu próprio inventei espontaneamente, incutiram-me uma forte confiança, modesta mas duradoura, na minha [própria] capacidade de fazer matemática, que [não] deve nada a qualquer consenso ou às modas que [se] passam por leis…”

A experiência descrita acima não é incomum em pessoas que deram enormes contribuições às ciências exatas. Várias delas tiveram algum episódio de trabalho solitário precoce [5]. O trabalho criativo nas ciências exatas parece exigir um período em que haja pouca ou nenhuma pressão por conformidade, um tempo em que se possa desenvolver e perseguir seus interesses, não importando o quão incomum ou bizarro o sejam. Ao fazê-lo, a prática costuma trazer um elemento de reinvenção do que já é conhecido [5].

Karlsson nos traz alguns exemplos [5]: Einstein reinventou partes da física estatística. Pascal, um autodidata em matemática porque seu pai não aprovava a prática, derivou várias provas euclidianas. A busca não é feita só de sucessos, há também muita confusão e becos sem saída. Por exemplo, Newton procurando padrões numéricos na Bíblia. 

Esse processo pode parecer um desperdício, se você considerar que o que eles estão fazendo é pesquisa científica. Mas não é, se você perceber que o que se está construindo é a sua capacidade de perceber a evolução do seu próprio pensamento. Sua capacidade de focar a própria atenção.

Penso que o que diferencia esses indivíduos extremamente criativos, é que, quando estão sentados com seus pensamentos, estão dispostos a permanecerem confusos. Ou melhor, estão dispostos a serem curiosos sobre aquilo que os confunde. Não buscam muito rapidamente a segurança de saber ou a segurança de uma pergunta clara. Sabem esperar surgir dessa atenção “aberta e solta” uma pergunta mais sutil e por isso mesmo, poderosa. 

Essa paciência com a confusão os torna bons em trazer à tona novas questões. É essa capacidade de levantar questões que diferenciava Grothendieck, mais do que sua capacidade de respondê-las. Quando ele escrevia que seus colegas eram mais brilhantes do que ele, se referia à capacidade deles de responderem perguntas. Paul Graham, um dos fundadores da já citada Y Combinator, costuma dizer que as pessoas geralmente demonstram mais originalidade em resolver problemas do que em decidir que problemas resolver. 

Bom, até agora só falamos sobre as qualidades do trabalho solitário. Por mais necessário que seja para pensar em questões e ideias originais, ele tem suas limitações. Trabalhos de qualidade necessitam que se saiba interagir com outras pessoas, aprender o que elas descobriram, encontrar colaboradores que possam ampliar sua visão, dentre outros tipos de suporte, inclusive financeiro.

O segredo é fazer isso sem perder a vantagem que a solidão fornece: uma oportunidade de estudar como é a curiosidade pessoal em sua forma bruta, livre da interferência das opiniões negativas. Se familiarizar com o caráter desse sentimento, torna mais fácil reconhecer se estamos reagindo ao potencial do trabalho que pretendemos realizar de maneira genuinamente pessoal ou se estamos cedendo a impulsos que, embora possam elevar nosso status no grupo do momento, abrem mão da originalidade do nosso trabalho. 

Após os seus três anos de trabalho solitário, Grothendieck se integrou ao mundo da matemática. Aprendeu as ferramentas do ofício, atualizou-se com as últimas descobertas matemáticas e encontrou mentores e colaboradores. A diferença é que fazia isso dentro da sua estrutura mental, dentro do seu estado criativo solitário.

Seus colegas, criados dentro do sistema, aparentemente não desenvolveram esse estado mental por si mesmos e, portanto, se tornavam mais suscetíveis à influência dos outros. Grothendieck sabia o que achava interessante, mesmo que confuso, porque havia passado três anos observando seu pensamento e traçando para onde ele queria ir. Ele não estava à mercê do mundo social em que entrou. Dessa forma, pôde escolher mentores que estavam alinhados aos seus objetivos e colegas que entendiam seu gênio particular. Em suas próprias palavras:

“Não me lembro de uma única ocasião em que fui tratado com condescendência por uma dessas pessoas, nem de uma ocasião em que minha sede de conhecimento e, mais tarde, de novo, minha alegria de descobrir, foi rejeitada por complacência ou por desdém. Se não fosse assim, eu não teria “virado matemático” como dizem – teria escolhido outra profissão, onde pudesse aplicar todas as minhas forças sem ter que enfrentar o desprezo.”.

Ele pôde interagir com a comunidade matemática com integridade porque tinha uma profunda familiaridade com seu espaço interior. Creio que se não conhecesse a forma como seus interesses e objetivos se formavam, teria sido mais vulnerável aos padrões e normas da comunidade.

Refletindo em perspectiva, é tentador achar que desenvolver esse estado criativo solitário é privilégio de quem possui recursos suficientes para “comprar” o próprio tempo e usá-lo para se desenvolver intelectualmente. É bom lembrar que Grothendieck estava longe de fazer parte da elite financeira e que sofreu indignidades inimagináveis, em um dos períodos mais tristes da história da humanidade, apenas por ser quem era. Mas, também é bom lembrar que ele teve acesso a um sistema educacional que, ao menos durante um período específico do pós-guerra, permitiu a busca pelo conhecimento de maneiras não convencionais. E isso fez toda a diferença.    

P.S: Para quem se interessar, os dois volumes de “Récolte et Semailles” foram publicados no original em francês pela Editora Gallimard e podem ser encontrados aqui. Desconheço versão em português.

P.S2: Em tempo, Grothendieck continuou trabalhando seus temas de interesse até o início da década de 1990. A Universidade de Montpellier, alma mater do matemático, recebeu cerca de 18 mil páginas escritas entre 1970 e 1991 e confiadas a um amigo. A universidade liberou acesso aos textos, que podem ser acessados aqui.  

REFERÊNCIAS

[1] “Pablo Picasso on the Importance of Solitude in Doing Serious Work”. Wellsbaum Blog, 18 de setembro de 2019, https://wellsbaum.blog/pablo-picasso-on-the-importance-of-solitude-in-doing-serious-work/.

[2] Popova, Maria. “James Baldwin on the Creative Process and the Artist’s Responsibility to Society”. The Marginalian, 20 de agosto de 2014, https://www.themarginalian.org/2014/08/20/james-baldwin-the-creative-process/.

[3] Taysom, Joe. “Bob Dylan Opens up about His Own Creativity and Songwriting”. Far Out Magazine, 20 de dezembro de 2022, https://faroutmagazine.co.uk/bob-dylan-creativity-how-he-writes-songs/.

[4] Salles, João Moreira. “A voz das coisas”. Revista Piauí, dezembro de 2014 https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-voz-das-coisas/.

[5] Karlsson, Henrik. “Childhoods of Exceptional People”. Escaping Flatland, 6 de fevereiro de 2023. https://www.henrikkarlsson.xyz/p/childhoods.

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