Feroza Aziz, uma estudante do ensino médio em Nova Jersey, nos Estados Unidos, foi censurada pelo TikTok ao falar sobre as prisões de mulçumanos em campos de concentração chineses. Para driblar a ofensiva do aplicativo, Aziz teve uma ideia: fazer vídeos se maquiando. Após 8 segundos retocando os cílios e se preparando para usar o blush, Feroza Aziz trocava as dicas de beleza por questões geopolíticas. Esse é um dos muitos casos descobertos por Chris Stokel-Walker em “TikTok Boom – um aplicativo viciante e a corrida chinesa pelo domínio das redes sociais” (Intrínseca, 296 páginas).
O vídeo de Aziz foi publicado porque o departamento de moderação tem 3 segundos para identificar o conteúdo. Ao longo de 8 horas, cada profissional deve assistir a mais de 1000 vídeos, segundo Stokel-Walker.
Dividido em capítulos que vão das inspirações às batalhas geopolíticas, o livro é um apanhado sobre como o aplicativo foi criado para ser viciante. Para elaborar essa trajetória, o pulso jornalístico do autor se mantém firme o tempo todo. Sua experiência pessoal em um evento sobre redes sociais e tecnologias disparou a importância do tema quando nenhum outro veículo dava bola para o “app de dancinhas”.
Por trás da febre provocada na geração Z, o livro trata da compra do Musica.ly, mas busca no fracasso do Vine um dos motivos para a ascensão do TikTok. À época de seu lançamento, os criadores tinham apenas seis segundos para criar algo magnético. A limitação não foi problema. A questão maior foi o baixíssimo retorno financeiro e, sobretudo, a falta de visão do Vine em relação aos influenciadores.
“TikTok Boom – um aplicativo viciante e a corrida chinesa pelo domínio das redes sociais” mostra como o fundador da empresa, Zhang Yiming, ultrapassou os concorrentes ao aplicar um algoritmo poderoso e constantemente testado para atingir essa excelência. O livro também radiografou o enorme investimento em marketing para gerar a autenticidade que domina o app, produzindo desde exemplos de sucesso, como a propaganda espontânea do ator e ex-governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, ao total fracasso com Cardi B, a rapper que foi paga para ter um perfil no TikTok.
Uma das qualidades da obra de Stokel-Walker está na distribuição dos temas relacionados à ascensão da empresa e o seu domínio, descritos por uma linguagem acessível. O peso dado à criação do algoritmo, o mistério em torno se o governo chinês tem acesso aos dados dos usuários ou não e os seus efeitos colaterais na concentração dos usuários, por exemplo, também conta a favor.
Em ritmo de thriller, são inúmeros os casos ilustrados, o que ajuda na materialização da teoria de que as redes sociais, talvez, não se importem muito com a qualidade de vida quando o produto em questão se trata de subtraí-la e manter as pessoas conectadas o tempo todo em um estado de diversão beirando ao alucinógeno.
Dá pra completar essa leitura, inclusive, com “Pós-História: vinte instantâneos e um modo de fazer” (Annablume, 196 páginas), do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser, uma espécie de “vidente” das redes sociais. Sua crítica, cuja gênese está na ruptura da criação da fotografia, parte da espetacularização da imagem como a criação da “pós-história”, ou seja, dessa contemporaneidade onde os eventos parecem criados para serem filmados, em vez de vividos, refletidos e compreendidos. Em sua primeira edição, publicada em 1982, com um vocabulário que deixaria qualquer social media familiarizado com o passar dos olhos, Flusser antevia que os novos revolucionários seriam as pessoas “de vídeo”, gente que manipula a criação de imagens, que vive “conectada” umas com as outras sem a separação entre público e privado, completamente alienadas e, acima de tudo, dispostos a aderirem a qualquer coisa – governo ou comportamento – em nome de “engajamento”. Na visão do filósofo, isso seria o fim da linha para a humanidade.
“TikTok Boom – um aplicativo viciante e a corrida chinesa pelo domínio das redes sociais” não aventa o apocalipse. Mas a última parte do livro trata da guerra travada entre a Byte Dance e Donald Trump, ainda em seu primeiro mandato. Com o retorno do republicano à Casa Branca, o futuro segue em aberto. O Canadá, por exemplo, mandou fechar o escritório do aplicativo no país, e o governo brasileiro está disposto a cercar as big techs cada vez mais, exigindo que as empresas assumam a responsabilidade na divulgação dos conteúdos criminosos.
Já entre os pontos negativos da edição brasileira do livro estão os depoimentos de criadores nativos no final de cada capítulo. Pequena Lô, Isaías e Tio Paulo estão entre eles, mas a proposta de oferecer um contraponto, se não parece irônica, já que os criadores não demonstram consciência para além dos seus perfis, rivaliza com a apuração de Stokel-Walker.
Contudo, isso não prejudica o livro. A pertinência da reportagem é justamente em apresentar o universo tiktoker como uma arma moderna que deve ser analisada como tal.