https://www.youtube.com/watch?v=XM0xWpBYlNM
Desde seu lançamento, em 28/dez/2018, a quantidade de vídeos e fóruns discutindo o filme interativo Black Mirror: Bandersnatch vem crescendo e demonstrando como a união de uma narrativa não linear e elementos adicionais que fomentam o aprofundamento da história nas mídias sociais é uma fórmula bastante interessante para reinvenção do consumo audiovisual.
Se você não viu ao filme – e continua lendo este texto por sua conta e risco apesar do risco de spoilers mínimos -, vale contextualizar: Bandersnatch é um filme interativo na Netflix que conta a história do desenvolvimento de um jogo interativo chamado Bandersnatch, baseado no livro interativo Bandersnatch.
Ops, explicando melhor…..
O filme se passa em 1984, quando um programador independente de 19 anos, Stefan Butler, apresenta seu projeto de game interativo (onde o jogador pode fazer escolhas que influenciam a história) a uma promissora desenvolvedora de jogos (Tuckersoft), se comprometendo a entregá-lo dentro do prazo necessário para lançamento no natal daquele ano. Ao longo da história, o espectador é convidado a escolher possíveis caminhos para o personagem usando o controle remoto de seu dispositivo (Smart TV, Apple TV, laptop, etc.) – “seu” = da pessoa que está assistindo mesmo.
Ele é a versão audiovisual dos gamebooks (ou CYOA – Choose your own adventure books), livros que permitem ao leitor seguir diferentes trilhas ao direcioná-lo para uma ou outra página, dependendo de suas escolhas em momentos de decisão. Este post do Update or Die na Rádio Globo fala um pouco sobre a história e aborda a questão da influência em nossas escolhas.
A ideia não é nova – estes livros têm sua origem na década de 1930 -, mas uma das coisas que torna Bandersnatch interessante é a capacidade de misturar os níveis das árvores de decisão (dicotômicas) de maneira que a narrativa não siga uma linearidade simples e o nível de profundidade da história seja variável em função do caminho escolhido. Não se trata simplesmente de um “você decide”, onde uma escolha elimina todas as demais possibilidades; em Bandersnatch elas podem ser recuperadas ou trazidas sob um novo contexto.
As decisões seguem diferentes modelos de árvore de decisão, ou melhor, do resultado (output) desta árvore de decisão, iniciando com escolhas inconsequentes (no sentido literal, que não trazem consequências) – como escolher Sugar Puffs ou Frosties para o café da manhã -, passando por decisões que levam a dead-ends – ao escolher entre desenvolver o game dentro da empresa Tuckersoft ou não -, chegando efetivamente a decisões que iniciam novas timelines.
Como toda história construída (e com 5 horas de material gravado), a narrativa tem como tema principal a ilusão do livre-arbítrio, não por acaso referenciada na própria história do personagem, que se questiona se seu destino é controlado por algo ou alguém fora de seu universo narrativo, em um clássico modelo de conflito do “homem versus o autor”.
Além disso, ela envereda por um cruzamento constante entre a experiência de escolha dos possíveis caminhos do filme e a própria narrativa através de árvores de decisão que não apenas criam um novo caminho para a narrativa, mas que entrelaçam estes acontecimentos em diferentes momentos da história, fazendo com que determinadas escolhas justifiquem comportamentos ou abram uma nova trama. Por exemplo, saber o papel do pai de Stefan em diferentes linhas narrativas pode resultar em sentimentos distintos com relação à sua morte (spoiler mínimo).
Na história, o filme incorpora também o conceito de multiversos, a existência de múltiplas realidades criadas a partir de cada nó de decisão, onde uma escolha não elimina sua alternativa – outro cenário onde o livre-arbítrio é inexistente porque a escolha, em si, é irrelevante em um contexto mais amplo, já que todas as possibilidades acontecem.
Com isso, aproveita para brincar com a influência de uma linha do tempo em outra, retratada no momento que personagens referenciam acontecimentos presentes apenas em outras linhas do tempo, como se soubessem coisas que não viveram (naquela realidade) e com uma cômica quebra da quarta parede ao incluir a Netflix (“uma TV online do século 21”) como possível entidade controladora do personagem.
Como toda boa experiência digital, o filme pode seguir acrescentando novos elementos – outros becos sem saída e finais escondidos estão sendo descobertos pelos espectadores. O filme / jogo / episódio de Black Mirror está repleto de auto-referências e oferece uma considerável quantidade de easter-eggs e aprofundamentos transmidiáticos, mostrando que os produtores entendem bem como levar uma narrativa para além daquelas horas reservadas para assistí-la.
A expansão da narrativa para além do filme em si se dá por meio de elementos presentes na história, desde a simples presença online da empresa desenvolvedora de games Tuckersoft (https://tuckersoft.net/) aos livros apresentados na história, que possuem páginas para compra na Amazon.com, mas que são totalmente ficcionais (em alguns fóruns discute-se se estes livros realmente existem ou não).
Bônus: um easter-egg traz Stefan dentro do ônibus escolhendo uma terceira fita cassete; quando tocada, reproduz um som que, convertido de .wav para .txt (sim, você leu certo), posteriormente pode ser interpretado como um QR Code, que o levará ao website oficial da Tuckersoft onde os jogos da empresa estão disponíveis.
Bandersnatch não é um “filme comum”, que segue a fórmula das histórias em 3 atos, e, portanto, fácil de ser assistido por quem está acostumado a este modelo. Na verdade, é até possível identificar estes momentos ao longo das construções do filme, mas, definitivamente, não é um filme para se deixar levar de forma passiva e sim, como os capítulos independentes de Black Mirror, incomodar-se com os rumos tomados pelo protagonista graças às escolhas feitas pela própria audiência. Audiência, esta, influenciada pelos personagens da história.
Ele merece reconhecimento tanto pela forma como pela narrativa. Primeiramente, por incorporar a ideia dos Gamebooks em uma plataforma audiovisual (Netflix), trazendo para a TV, até então uma mídia passiva, a essência dos jogos – a ilusão da escolha e do controle. E, em sua história, com o uso da metalinguagem, da quebra da quarta parede e dos arcos do protagonista de forma primordial, sem clichês, ainda que com toques de nonsense.
Forma e conteúdo se mesclam constantemente e de maneiras inusitadas, fazendo com que o espectador experimente a sensação alucinatória do protagonista e, em certos momentos, sinta-se induzido pela narrativa a escolher uma de duas opções disponíveis, resultando em dead ends e deliberadamente confundido a fronteira entre a história e a realidade.
Não podendo deixar de comentar, é um filme muito Black Mirror, meu.