Antes de mais nada, uma confissão: este título é um tanto quanto ambíguo e, por isso, as mais sinceras desculpas pela sensação de click-bait :)
Explicando….
A Intel acaba de anunciar a compra da Mobileye, uma empresa que explora a tecnologia de carros autônomos, por U$ 15 bilhões e, seguindo diversas outras companhias – Google, Baidu, Uber, Volvo, Ford, GM, etc, etc, na verdade 44 empresas no total, apenas entre as de capital aberto -, planeja iniciar o quanto antes seus testes com veículos autônomos.
Assim, falar que a chegada dos veículos auto-dirigíveis impactará a indústria automotiva é óbvio. Mas talvez não da maneira como algumas pessoas pensam.
Um impacto considerável sendo considerado para esta indústria não trata de uma evolução tecnológica incremental dos produtos comprados pelos consumidores, mas sim da comoditização do transporte e da consequente migração de um modelo de “posse” para um modelo de “uso”, especialmente quando atingirmos o nível 5 de autonomia dos veículos (autonomia total, independente da presença de um humano).
Existem vários motivos para alguém ter um carro (Linda Steg tem um importante texto acadêmico sobre este tema: “Car use: lust and must: Instrumental, symbolic and affective motives for car use“). Razões emocionais (liberdade, controle), sociais (demonstração de status ou pertencimento social) e, por fim, funcionais (ir do ponto A ao ponto B).
Olhando para o terceiro ponto (motivos funcionais), é importante termos em mente o altíssimo grau de inutilização de um veículo durante o dia.
Um estudo feito pela Royal Automobile Club (RAC) Foundation, no Reino Unido, em 2012, indicou que, naquele país, um veículo passa 96,5% do tempo estacionado. Os números em outros países estudados não são tão distintos. De acordo com a UITP Millennium Cities Database o percentual de automóveis estacionados em 84 cidades ao redor do mundo é de 95,8% (os veículos estão em movimento 61 minutos por dia, somente).
Isso, inclusive, gerou toda a discussão sobre o valor de se ter um automóvel versus utilizar um serviço de transporte, como Uber ou Cabify, e, para os proprietários, poder ‘alugar’ seu carro durante os períodos de não-uso, serviços como o Turo.com, GetAround.com e EasyCar.com.
Da mesma forma, os pesquisadores Michael Sivak & Brandon Schoettle – Potential impact of self-driving vehicles on household vehicle demand and usage – indicam que poderá ocorrer uma redução de 43% na propriedade de automóveis, ou seja, se a razão principal para a posse de um carro é ir do ponto A ao ponto B, porque assumir o custo fixo gigantesco (seguro, estacionamento, depreciação) de um bem que, na maior parte do tempo, fica, literalmente, fixo (parado)? ISTO é o que deve preocupar as montadoras de automóveis; e não somente elas.
Do ponto de vista utilitarista, não precisamos de um veículo, precisamos ir de um lugar ao outro. E, para tanto, fazemos uso de veículos que adquirimos ou meios de transporte que utilizamos (carro, bicicleta, transporte público)
O transporte público atual, por sua vez, existe de maneira concorrente ou rompante com o sistema viário automotivo. Concorrente quando compete com ele pelo espaço e sofre as consequências das intempéries do meio – como os ônibus e trens urbanos (ou “trams”) e rompante quando possui um sistema de tráfego que existe de forma isolada ou com tráfego controlado de forma integrada, otimizando-o e, como consequência, melhorando o tempo de deslocamento (como metrôs).
Sobretudo em grandes centros urbanos, a estratégia de gestão pública privilegiou sistemas de transporte individuais ao invés dos coletivos. Tomando como exemplo a cidade de São Paulo, embora conte com um serviço de metrô com 74,3 quilômetros de extensão (em cinco linhas e 64 estações) e 1.348 linhas urbanas de ônibus coletivos, nos últimos anos, a política econômica brasileira beneficiou em muito a venda de automóveis (reduções de IPI, facilidade nas importações, aliado às melhores qualidades dos automóveis disponíveis e aumento de crédito) em detrimento do investimento em políticas de transporte público amplo, confortável e de fácil acesso. Podemos dizer que, individualmente, é “melhor” (mais confortável e prático) deslocar-se de automóvel pela cidade do que fazer uso do transporte público (superlotado e com péssima capilaridade).
E, por mais distribuído que um transporte público atual possa ser (o que, definitivamente, não é o caso na maior parte dos países), ele jamais será porta-a-porta, razão pela qual os veículos autônomos sob-demanda encontrarão um amplo mercado potencial.
Assim, se seu objetivo é ir do ponto A ao ponto B, de uma forma confortável/prática, com menor custo (eliminação do custo fixo e barateamento do custo variável com aumento da demanda e/ou subsídios graças à publicidade, fidelidade, etc), para quê, for god’s sake, você precisaria comprar um carro?
Por esta razão, é muito provável eu nunca terei um carro autônomo, o que não significa que não irei usá-los, constantemente, diariamente, ao toque de um botão.
Excelente abordagem. Concordo em quase tudo. Porem, alguns pontos me intrigam. Os custos não foram todos colocados, como a urgência em que você precisa se deslocar do ponto A ao ponto B, muitas pessoas pagam (tem custos fixo de um automóvel) para que quando precisar se deslocar, fazer isso quasse instantaneamente. Mas acredito que na maioria dos casos, essa urgência não existe, é mais comodismo e sentimento de posse mesmo. Outro ponto que me intriga é o exemplo de São Paulo que foi colocado acima, fico pensando, se mesmo com a evolução do transporte coletivo e o aumento da frota de carros, o metrô vive lotado nos horários que mais se precisa dele, é desconfortável, além de em alguns casos (ônibus+metrô) demorar muito mais tempo para ir do ponto A ao ponto B, imagine se a frota de carro não tivesse aumentado, poderia ser pior ainda o transporte coletivo. Posso estar errado nessa análise. Mas apesar de no futuro, as pessoas tenderem a mudar o sentimento de “posse” para um sentimento de “uso” (acho isso fantástico), só vai funcionar se outras medidas forem tomadas, como por exemplo, maior flexibilização de local/horário de trabalho (não empurrar todos ao mesmo tempo para as ruas), mudanças sociais e culturais (mudar mentalidade) e menor regulamentação (mercado mais livre) para que a curva de “custo x benefício” se equalize ao longo do tempo. Fora isso, é só uma ideia muito boa. …Parabéns pela postagem!