Tudo começou em fins de 2006, um ano depois que abri minha consultoria Setor 2 ½, a fusão estratégica entre o Segundo e o Terceiro Setores, junto com a Renata Cook e o Glen Martins.
A Grendene queria achar alguma tribo indígena pra apoiar no lançamento da sua linha de sandálias femininas Ipanema Gisele Bündchen, a pedido da própria, Gisele.
Típico Marketing Relacionado a Causas. A Gisele queria porque queria ajudar alguma tribo da Amazônia, depois que ela havia passado uns dias no Xingu.
Logo recomendamos não associar a Top Model Number One do Mundo com um tema controverso e polêmico como ÍNDIOS.
Na nossa culpa de Homem Branco, destruidor da cultura dos primeiros brasileiros de verdade, os Índios, nós só vemos problemas com eles e somos desrespeitosos. Isso não combina com os traços de imagem e reputação da Gisele, com o mundo da Moda, elegante e glamoroso, chic e badalado.
Depois de muito pesquisar, encontramos uma Causa e não uma tribo. Foi a Causa das Águas, através do projeto ‘Y Ikatu Xingu, coordenado pelo ISA – Instituto Socioambiental.
E o mais legal: a Causa tinha como sua maior defensora uma nação indígena, tudo o que a Gisele queria: os Kisêdjê.
A Causa das Águas era mais condizente com os valores da Gisele e do mundo da Moda: beleza, vida, leveza, fertilidade, paz.
O ISA nos ensinou a não doar dinheiro nem pra Causa e muito menos pra tribo.
Tivemos uma reunião antológica, em Brasília. De um lado o Marketing da Grendene, de outro lado 2 caciques e um pajé dos Kisêdjê, seminus e com lanças na mão ao invés de canetas Montblanc.
A negociação foi um sucesso: a agência, então W/Brasil, e a Conspiração Filmes contrataram a população Kisêdjê para a produção do comercial.
Num orçamento normal, quanto custaria alugar uma locação daquelas por alguns dias? Então alugamos a aldeia dos Kisêdjê por esse mesmo valor.
Quanto custaria contratar maquiadores? Então contratamos as matriarcas da tribo pra fazer pinturas autênticas na Gisele.
Idem com a figuração e elenco: cachê pago pela participação da tribo na filmagem.
Trilha? Basta um profissional de som direto, pra captar a tribo entoando seus cânticos ancestrais – e pagar direitos autorais e fonomecânicos da música aos indígenas.
Não demos esmola a uma minoria étnica e folclórica. Pagamos justamente por um trabalho bem feito, com verdade e autenticidade.
Esses recursos financeiros foram destinados ao programa ‘Y Ikatu Xingu, na defesa e recuperação das matas ciliares que estão fora do Parque do Xingu e alimentam os afluentes desse grande rio que, por isso, está minguando dentro do Parque.
Funcionou pra todos. A Grendene teve um aumento de 26% no volume de vendas, além de reforçar sua imagem.
A Causa ganhou notoriedade e apoio nacionais graças à Gisele.
E a Gisele começou a construir sua Persona Pública como uma ativista socioambiental.
Vou abrir parênteses.
(É verdade, a Gisele tem alma socioambiental e nem sabia direito. Tivemos esse insight quando a Gisele, numa das nossas conversas de fim de dia, falou bem assim: “Eu sou uma espécie da Mata Atlântica em extinção. Saí cedo de Horizontina, onde eu subia em árvores pra comer frutas, nadava nos riachos. Todo ano eu volto lá e tá tudo acabado, as árvores e a água se foram, como eu me fui de Horizontina”.)
A partir dessa autenticidade, criamos uma estratégia pra reafirmar essa Persona Pública Socioambiental da Gisele em todas as suas ações. Ela foi exemplar, honrou e honra suas crenças e convicções.
Mas antes de a Gisele assumir essa Persona Pública, houve uma viagem à Alemanha.
Todo ano a Grendene lançava a nova coleção de sandálias Ipanema Gisele Bündchen aqui no verão e, em meados do ano seguinte, lançava a coleção na Europa através de um grande distribuidor regional um pouco antes do verão de lá.
Grendene e Gisele me levaram a tiracolo pro lançamento na Europa, afinal seria a primeira linha de sandálias apoiando uma Causa socioambiental e uma nação indígena, algo sério e delicado para a opinião pública europeia.
Com isso eles não brincam, não admitem truques, green-washing, auto-elogios, apelos vazios e falsos. Por isso eu fui lá, como suporte técnico da ação de Marketing Relacionado a Causas, pra não deixar dúvidas quanto à autenticidade, legitimidade e efetividade do projeto.
Manhã de 29 de abril de 2008, salão nobre do célebre Hotel Adlon, em Berlim, onde se hospedavam Hitler e Marlene Dietrich. É mais ou menos o Copacabana Palace deles.
Mais de 200 jornalistas da Europa toda, todos aguardando ansiosamente a entrada da Gisele Bündchen no palco-passarela pra desfilar sua beleza, carisma e as novas sandálias da Grendene – em apoio a uma Causa socioambiental e uma nação indígena.
Tudo majestoso, fachos de luzes coloridas dançando dos holofotes suspensos, trilha moderna e fashion, típica dos grandes desfiles de moda, uma passarela, grande expectativa na plateia.
O locutor anuncia: “Ladies and gentlemen, welcome the star, the great, the top, the Uber Model… Gisele Bündchen!”
As cortinas de veludo vermelho carmim se abrem e aparece no palco… eu.
Senti um “ãhhhh…” na plateia. Frustração, decepção, desapontamento, anticlímax. Nem meus filhos me trataram assim uma vez na vida.
Eu me apresentei como assessor da Gisele para temas socioambientais, falei do projeto ‘Y Ikatu Xingu, da questão das Águas do Rio Xingu, dos afluentes minguando pela ação predatória da agropecuária, da participação efetiva da Gisele no movimento, seu engajamento, mostrei dados, fatos, materiais com a Gisele na aldeia, com o povo e as autoridades locais, depoimentos.
Foram 10 slides e uma fala tranquila de 8 minutos.
Em seguida, chamei a Gisele e caí fora daquele palco. Aí começou o show mesmo, a apresentação dos produtos, desfile, coletiva de imprensa. E eu a tiracolo.
Descobri uma Gisele autêntica, engajada mesmo.
Vejam 2 exemplos de participação voluntária da Gisele: um a favor de um Código Florestal mais moderno, há poucos anos; e outro sobre Mudanças Climáticas, Manejo Sustentável da Vida, de 2011.
São exemplos dignos de uma espécie da Mata Atlântica em extinção.
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Sobre esta transação, sugiro a leitura do texto A pintura esquecida e o desenho roubado: contrato, troca e criatividade entre os K«sêdjê