“Isso eu não vou publicar”

"Isso eu não vou publicar" "Isso eu não vou publicar"
Todos nós, elos de corrente

Outro dia estava zapeando pelos canais da TV, quando dei de cara com um jogo de futebol, acho que era na Inglaterra. O jogo estava parado e os jogadores com as mãos na cintura. Motivo: um torcedor tinha invadido o gramado e o canal que transmitia o jogo ao vivo optou por não mostrar o invasor.

Não que a cena de um barrigudinho pelado, só de cachecol, perseguido por quatro policiais, não fosse interessante. Longe disso. Mas já há algum tempo o protocolo dos canais de TV é o de não mostrar invasões. Enquadram qualquer outra coisa, menos a invasão.

A justificativa é que, apesar de ser algo fora do comum e até com potencial para dar uma levantada na audiência, o melhor é não incentivar esse tipo de coisa. Seja por alteração no padrão da transmissão, pela dúvida sobre as reais intenções do invasor, (que pode ser apenas um fã inofensivo ou um terrorista), etc. E como o objetivo desses caras é aparecer pro mundo… eles não mostram.

Interrompem a brincadeira. A graça e a vontade de invadir o gramado desaparece quando se sabe que a invasão não vai aparecer na TV.

A manobra tem funcionado e as invasões de campo diminuíram drasticamente nas últimas duas décadas.

Esse texto é sobre isso: sobre a decisão de não servir de veículo e de não passar adiante certas coisas que podem ser potencialmente nocivas.

Somos todos elos de uma corrente

Tempos atrás, Facebook, YouTube e Twitter fizeram uma força-tarefa para retirar as imagens e os videos do terrível massacre que aconteceu nas mesquitas da Nova Zelândia. Você deve estar lembrado, um dos próprios atiradores transmitiu tudo, ao vivo, por 17 minutos. E muito deste material extremamente violento e sensível foi captado e compartilhado, praticamente em tempo real, por diversas pessoas que testemunharam o atentado.

Ao mencionar o nome do mal, o mal se faz presente

Regra boa para se ter em mente antes de propagar coisas por aí

Na semana anterior o Facebook já havia tomado uma decisão parecida em relação ao conteúdo anti-vax (movimento contra a vacinação) por entender que não se trata apenas de um caso de opinião, mas sim de um ato que pode ter um enorme impacto futuro em relação a erradicação de doenças que já estavam controladas há décadas e que agora ameaçam voltar.

Em ambos os casos o Facebook reconheceu que é, provavelmente, a principal via de propagação dessas coisas e resolveu tomar uma atitude pró-ativa. E é preciso reconhecer e aplaudir a iniciativa. Não é fácil categorizar conteúdo e traçar uma linha clara onde acaba o direito de um e onde começa o prejuízo do(s) outro(s). É como o dilema de mandar ou não o seu filho para escola naquele dia em que ele amanheceu com gripe. O filho é seu, mas talvez quem vai sofrer as consequências da sua decisão é algum colega de classe. É preciso avaliar sempre as implicações do nosso poder de tomar certas decisões.

Esse mesmo tipo de atitude, de pensar um pouco antes de passar alguma coisa adiante, deveria ser uma prática habitual também para nós, meros mortais. Claro que aquela foto do corpo da vítima dilacerada que você achou antes de todo mundo vai incendiar sua timeline. “Olha isso, inacreditável!”. Serão dezenas, centenas de comentários. E foi você que achou!

Mas será que vale, essa breve descarga de dopamina?

Será que estampar uma imagem dessas é realmente necessário para você se posicionar sobre os acontecimentos do dia? Será que você precisa desse truque editorial baixo, recurso de tablóide, só para ser incrível?

Nem precisa ser um exemplo tão extremo.

Será que o material que a gente passa adiante por aí acrescenta de fato algo de bom na vida das pessoas que resolveram te seguir?

Relevância não é uma obrigatoriedade, afinal o banal também tem seu lugar nas redes. Mas conteúdo sensível só pra ganhar like… será que vale?

Mas triste mesmo, e me desculpem os poucos bons jornalistas que ainda restam por aí, o pior disparado é a imprensa, profissionais que sabem EXATAMENTE o que estão fazendo quando escolhem pautas e materiais.

Exemplo, vai.

Estava eu ouvindo as notícias no carro e o assunto era o preço abusivo das passagens aéreas nacionais.

Segundo a matéria, as companhias aéreas estariam combinando valores, a famosa formação de cartel. A manobra só foi descoberta porque as passagens, de diferentes empresas, estavam com o mesmíssimo valor, até na casa dos centavos. Algo impossível já que teoricamente os preços de passagens aéreas variam dinamicamente. E foi nesse pequeno detalhe que foram pegas e desmascaradas.

Aí cabe a pergunta: sabe quando outra empresa mal intencionada vai cometer esse erro de novo? Bom, das que ouviram a dica pelo rádio naquele dia, garanto que nenhuma.
A notícia funcionaria do mesmo jeito sem revelar o “como”. Que, obviamente, deveria ter sido omitido para preservar futuras investigações. Mas aí, alguém revela e pronto, todos os outros veículos (que se pautam mutuamente) acrescentam também a informação que nos prejudica enquanto consumidores.

Outro exemplo que lembrei agora: quando o Boechat morreu, a maioria dos veículos de comunicação ficaram sabendo do acidente logo após o ocorrido, mas tiveram a elegância e a decência de segurar um pouco a notícia, para dar tempo a Rede Bandeirantes entrar em contato com a família dele, antes. Infelizmente a revista Veja resolveu ignorar essa prática e foi assim que a viúva ficou sabendo da morte do marido: com uma foto do local do acidente.

Enfim, está na hora da imprensa parar se pautar pela audiência, e parar de ficar ensinando como se acessa a deep web, como se prepara uma bomba caseira com panela de pressão cheia de pregos, como os malucos fazem para burlar a segurança das escolas, etc.

A timeline dos portais de notícias virou o que existe de pior no ser humano. Só desgraça, só indignação desmedida, só glamurização de nano-celebrities e fofocas. Pô, foi pra isso que conectamos todos os seres humanos do mundo? Agora que estamos todos ligados, com todas as possibilidades de compartilhar coisas legais, de conseguir alcançar quem a gente quiser… e é esse tipo de coisa que a gente escolhe propagar?

Se for pra sobrar apenas uma coisa desse texto que seja essa bem-intencionada sugestão:

Tenha uma atitude ATIVA em relação ao conteúdo que (1) consome e (2) compartilha. Não passe adiante por impulso.

Somos todos, filtros.

E cabe a cada um de nós exercitar com mais cuidado e responsabilidade essa dinâmica entre o que chegou e o que partiu de nós. Não é difícil! Em 99% das vezes, são pequenos ajustes, pequenos cuidados em respeito ao coletivo. Não é preciso “ser incrível” a cada postagem. Vamos ser também, úteis.

Vamos tentar melhorar o que nos atravessa.

3 comments
  1. Excelente texto para gente refletir sobre o que compartilhar ou não. Também cabe ressaltar a responsabilidade de cada um em propagar certas notícias e informações. Hoje, mais que nunca, cada um de nós é um veículo com um grande poder nas mãos. Mesmo não sendo um “influenciador ou micro influenciador de carreira” todos temos nossa parcela na dimensão que uma notícia ou informação pode ganhar.

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