Essa história é meio estranha, mas vale ser contada.
Enviei esse texto para a minha editora, que sempre está atarefada mas acha uma brecha na agenda para ler meus materiais. Usamos o Google Docs para facilitar nosso trabalho, então, quando ela chegou em um determinado ponto, inseriu alguns comentários e questionamentos que eu, amante inveterado de um bom debate, preferi deixar cru, para que você acompanhe a nossa conversa.
O bate-papo está lá embaixo, mas o texto original começa aqui:
“É velha e cansativa a discussão sobre se a criatividade é inata ou não nos seres humanos. Mas, acredito que vale mais uma tentativa.
A parte imaterial do ser humano, que muitos chamam de várias coisas, dependendo de suas origens culturais, é mais conhecido como espírito. A energia etérea que dá vida a esse frágil corpo biológico. O “software” que anima o “hardware” usado para interagir com esse mundo.
Computadores e celulares sem aplicativos são apenas pesos a serem carregados e, por isso, perderiam o sentido de existir. Essas máquinas são programáveis, daí podem passar de apenas blocos de aço, plástico e silício para poderosas centrais de entretenimento, pelo simples fato de terem sido “orientadas” para isso.
O hardware digital é literalmente vazio sem software.
Da mesma forma, pessoas sem acesso a bons conteúdos e oportunidades de ter experiências dificilmente desenvolvem a sua capacidade biológica para a criação. Stephen Hawking (1942/2018) passou a maior parte de sua vida refém de uma cadeira de rodas, mas isso nunca o impediu de ter ideias. Seu hardware tinha limitações, mas a sua central de processamento parecia não perceber isso. Talvez as dificuldades tenham até servido de estímulo para seguir “caminhando”.
A civilização é uma corrida entre a educação e a catástrofe. H. G. WELLS soou meio sombrio quando afirmou isso, mas se a gente presta atenção aos detalhes e olha ao redor, percebe o quanto faz falta boas oportunidades de aprendizado, e como isso pode fazer a diferença entre o progresso pacífico e igualitário e a catástrofe nua e crua. E não se engane, quando falo de educação não falo de escolas bem equipadas e uniformes impecáveis.
A parte imaterial no mundo digital são bits e bytes, circulando à velocidade da luz, mantendo tudo funcionando plenamente, com semáforos, sistemas de segurança, bolsas de valores, cartões de crédito, etc. O espírito lógico que governa nossas vidas em praticamente todos os lugares do mundo. Ele aumenta seu poder, a cada dia, aprendendo a petabytes por segundo, sem perder nenhum detalhe.
A atual crise potencializou a necessidade e a emergência da famigerada educação online, já que dificilmente voltaremos a nos aglomerar em salas de aula físicas. E mesmo que isso aconteça, nunca mais seremos curados da atual ideia de que é possível criar um novo jeito de fazer educação.
A maioria dos professores e dos alunos não esperava bater de frente com a realidade de ter que estudar à distância. A rotina de ambos foi destruída, assim, sem aviso prévio. O espírito de ambos foi abalado. E, como a vida sempre segue adiante, ambos precisam se adaptar à nova realidade, que é essa aí, sem cara, sem identidade, imprevisível. Essa que promete não deixar a cena, pelo menos por enquanto.
A criatividade de professores e alunos foi colocada em cheque. Suas necessidades agora são outras. Seus objetivos estão em revisão. O sistema eletrônico que nos governa continua lendo a situação, aprendendo com os novos números que lhes são enviados, reorganizando cenários e tirando vantagem de tudo. E nós, mecanismos orgânicos e dependentes do que aprendemos à velocidade da boa vontade, o que vamos fazer?
Parece que o desafio de desaprender e reaprender nunca foi tão real e imediato.”
***
Bem aqui, começou o debate. A minha querida amiga Leiliane Germano, jornalista e, principalmente, ativista dos direitos das mulheres, não resistiu e pediu pra ligar a câmera e dissecar melhor essas ideas que eu tinha colocado no “papel”.
E nesse dia a mocinha estava cheia de energia. Ajustava os óculos com o famigerado dedinho inquisidor, que sempre usa pra defender seus melhores argumentos.
ELA: Como ser criativo em meio a um cenário em que a ação dos professores e alunos depende de questões econômicas muito maiores? As necessidades não envolvem apenas mecanismos de ideias, mas também investimento.
EU: Então, essa é uma excelente questão. Acredito que o caos gera novas ideias, mesmo a preços muito altos. Essa é uma premissa da criatividade. A natureza sempre acha uma saída, e a gente, de muitas formas, também. Afinal, somos uma parte dela, e tendemos a agir como tal. No entanto, nesse caso específico que você mencionou, merece uma consideração. Estamos encarando o resultado de séculos de “escravização educacional”, ou seja, fomos adestrados via escola para sermos repetidores, gente que teve o espírito empreendedor comprometido. Fomos “descriativizados”. No geral, não apreciamos criar ideias e perseguir sonhos. Fomos literalmente “formados”, temos até diplomas para provar isso. Agora, quando a história resolveu dar uma guinada, ninguém estava preparado para isso, nem intelectual e nem mesmo economicamente. Países como os EUA são exemplo disso. Mas, no caso deles, pelo menos os americanos ainda têm a seu favor o famoso “sonho americano” que os motiva, e alguns trilhões de dólares para refinanciar um sistema novo de educação. Mas, para nós, tupiniquins, resta sobreviver ao caos, tirando ideias novas de estômagos vazios. Terrível desafio. Não existe resposta pronta e mágica, afinal, se eu a tivesse deveria ganhar o Nobel por isso. Mas, acredito que o incômodo que todos estão sentindo fará com que pelo menos algumas pessoas se movam em direções diferentes, saiam da zona de conforto e comecem a pensar por si mesmas, não esperando muito de governos paternalistas. Afinal, a mudança precisa começar em cada um de nós, de baixo pra cima, fruto de inquietação, o que move o sonho de qualquer nação que deseja ser melhor um dia.
Eu via na carinha dela que não estava satisfeita com a minha resposta, e mandou outra logo depois de dar um gole no chá verde que adora, enquanto se ajeitava na poltrona onde estava.
ELA: Sim, fomos literalmente formados para termos diplomas, porém o que me parece (e matérias já apontam isso – e talvez seja até o óbvio) é que nosso corpo docente está pouquíssimo preparado para esse novo cenário educacional. Primeiro porque não passou por um processo de relacionamento com o mundo digital, segundo porque ficou preso exatamente nesse mundo ilusório e estático do quadro negro e giz. Resta saber se ficaremos presos no tempo ou se é possível em tão pouco tempo, levando em consideração que a pandemia nos apressa a cada vez mais achar soluções, encontrar uma para isso. E a partir dessa pontuação faço o questionamento: é possível resgatar essa massa de professores que não está conseguindo se adequar aos novos meios digitais (se sim, como?) ou essa camada de trabalhadores será considerada obsoleta?
Dessa vez, eu que precisei me ajeitar na cadeira, e nem tinha um chá pra molhar a garganta.
EU: Então… É difícil dizer, mas posso tentar dar um chute bem sem noção aqui. Acredito que a obsolência é o nosso destino, de alguma forma. Ela vai nos pegar em algum momento da história recente vindoura. Esse novo cenário que acabou de nos atropelar, digo isso porque ninguém o esperava, vai se metamorfosear o tempo todo, mudando de forma em intervalos cada vez menores de tempo. Todos nós, sejamos jovens ou velhos, trabalhando em qualquer área, seremos afetados de muitas formas. Os governos provaram ser plenamente incapazes de dar conta de grandes questões que afetam seus países. Isso está claro. E essa certeza pode colocar a ideia de democracia em xeque, por exemplo. Mas, não vou ir por esse caminho. Acredito que o caos vai nos pressionar até o ponto máximo. A falta de certeza e de grana, obviamente, vai fazer muita gente saltar da cadeira e buscar novos aprendizados, mas também vai fazer outras pessoas se afundarem no buraco do desespero e se perderam pelo caminho. Precisaríamos de um governo decente e coerente para sentir os fatos e tomar atitudes que viabilizem a nossa capacidade de superar essa fase complicada. Infelizmente, esse governo não existe neste planeta, talvez uns poucos. As repostas sobre o que pode ser feito virão à medida que nos acostumarmos com o próprio caos. Teremos baixas? Sim, mas é o preço que a humanidade vem pagando no decorrer de sua história. Se aprendermos com nossos erros, seremos mais eficientes na arte de superar grandes desafios. Mas, na maioria das vezes, quando parece que aliviou um pouquinho baixamos a guarda, e uma nova onda de mudanças joga todo mundo na areia de cabeça pra baixo.
O dedinho já estava de pé quando digitei a última palavra. A caneca vazia a deixou incomodada, mais do que já estava. Eu conheço quando a figurinha fica nervosa. Então, pedi pra ir buscar uma bebida, enquanto ela digitava a sua resposta.
ELA: Vamos falar de aprender com erros. A Julia Cameron vai falar em seu trabalho que para aprender com erros e sobreviver precisamos de sanidade e que sanidade requer um exercício de prestar atenção. Estamos em um momento em que prestar atenção se tornou algo raro para muitas pessoas, levando em consideração que somos bombardeados de informações e nos acostumamos a dar muito rápido “um f5 nas coisas”. E criatividade depende disso, entender os erros, aprender com eles e ver naquela fresta que eles deixaram uma solução tão óbvia que os desatentos não enxergaram. E aí, como prestar a atenção e conseguir sobreviver nesse momento que o “f5” é dado mundialmente na velocidade da luz e a nossa sanidade está completamente ameaçada? E ainda por cima ser criativo…
Quando voltei com a minha taça de Cabernet as elétricas linhas da jornalista estavam lá, a minha espera. Depois de um gole e de respirar fundo, tentei de novo.
EU: Então… Lamento informar, mas creio que o futuro não é belo e colorido. Pelo menos na minha opinião. Não teremos tempo hábil para reprogramar as pessoas de maneira tão rápida. Acredito que essa será uma fase sombria. O mundo está cheio de pessoas, e não fomos capazes de imaginar que (des)preparando elas, mesmo que recebessem um diploma, seria tão grave para a humanidade. O preço pode ser muito alto para bilhões de pessoas. Governar o mundo se faz necessário, já que fatos ocorridos em partes afetam o todo. Se o governante de um país desdenha um acordo, todos os outros pagam o preço. Se uma crise ou epidemia aflige um local, o risco de se espalhar é enorme. Estamos conectados de muitas formas. E não dá para fechar os países, simplesmente. O futuro imediato é complicado. O retrato deixado pelo Covid-19 provou que o sistema que nos governa ainda é frágil e dependente do ego de pessoas incompetentes. Mas, se me permite, e se olharmos para trás, percebemos que de tempos em tempos as pessoas se juntam e derrubam aquilo que as sufoca. Espero e acredito que a força da cultura digital, que conecta muitas pessoas, pode ajudar a dividir conhecimento e gerar uma nova cultura de negócios, na qual seja privilegiado um sistema menos vil que o tipo de capitalismo que temos hoje. A nossa esperança está no espírito criativo das pessoas e no espírito digital da Internet.
Os olhinhos castanhos da minha amiga estavam brilhando nessa hora. O nervosismo diminuiu, mas a energia ainda estava lá. Engoli seco e esperei a sua réplica.
ELA: Sim, é o processo das trocas ideológicas. Um claro exemplo disso é a movimentação em torno da morte de George Floyd que repercutiu aqui no Brasil e em outros países. Pessoas estão acordando, vendo seus líderes com um olhar mais crítico, conectando suas indignações via rede virtual e levantando a voz para além das telas. E sendo criativas em suas manifestações em um momento que a maioria não poderá ir para rua: vide panelaços, twittaços e postagens combinadas. Estamos estourando as bolhas aos poucos. Só que é preciso também estourar a bolha que nos prende em um sistema que se retroalimenta com exploração. Muitas profissões estão ficando para trás nesse momento de pandemia e falência de negócios. O jornalismo já sofreu isso em 2019, quando o governo editou uma medida provisória em que decretou que o diploma já não é exigência em vários cargos de comunicação. Para muitos, ver seus diplomas indo para a gaveta será péssimo pós covid-19, porém para quem souber estourar a bolha e se reinventar esse momento também poderá ser um gás para “enxergar com mais atenção e sanidade”. Eu não vou engatar uma pergunta, mas queria que comentasse sobre isso: sobre essa quebra de bolhas que nos levou a entrar em comodismo e agora nos dá esse tapa na cara.
Ela não cansa. Eu já tava suando frio, mas do outro lado da tela os tiros não cessavam. Outro gole e fui obrigado a seguir com as ideias.
EU: Boa… Pessoas com fome são animais selvagens. E estamos com muitos tipos de fome, além do famigerado sentido comum que a maioria das pessoas nas periferias têm. Fome de justiça, de dignidade e de oportunidades. Enfim, motivadas de muitas formas, as pessoas estão saindo de seus lugares originais e partindo para a mudança que acreditam ser a melhor. Claro que isso gera conflitos de interesses, pois a enxurrada de ideologias torna esse momento extremamente inflamável. A internet é a nova Bastilha. Dominados pelo horror que nos assola, acredito que vamos “quebrar” tudo pelo caminho para derrubar um sistema opressor que facilita a concentração de renda para uma classe cada vez menor. Não sou comunista, aproveito para dizer. Mas, o capitalismo provou necessitar de uma reconfiguração urgente. Usamos processos educacionais e programamos pessoas para o trabalho e para o comportamento social, seguindo regras que os mantiveram dóceis e comportados durante muito tempo, e isso enriqueceu muitos países, deteriorando, claro, a capacidade dessa imensa massa de gente de reagir diante de catástrofes. Quando o bicho pega, os donos do poder estão protegidos em seus castelos, palácios, palacetes e mansões, com grana no bolso e o código de acesso ao banker mais próximo. E o resto, além de não ter para onde ir, nem sabe se pode sair do lugar. Fomos programados para não reagir, e isso precisa ser revisto. E é exatamente isso que parece estar mudando. A internet ajuda as pessoas a ter um sentimento novo de pertencimento, mesmo sendo alvos de fake news. A saída agora é ajudar as pessoas a reorganizar seus sentimentos. Acreditar que podem fazer pequenas mudanças onde moram, criar possibilidades em suas comunidades e se tornar cada vez menos dependentes do centro da cidade, com seu excesso de aço, ferro e taxas a serem pagas.
Nessa hora o chá e o Cabernet já tinham ido embora. E sentimos que a conversa tinha chegado a um bom termo.
ELA: Lanço primeiro uma pontuação a se pensar a partir da sua fala. Se o capitalismo falhou, por que reorganizá-lo? Por que manter um sistema que ainda reorganizado será um sistema cunhado em exploração (um dos motivos da atual crise econômica e até mesmo alguns pontos da crise sanitária)? Se podemos repensar sistemas que fujam da incansável exploração, mas que também não sejam os velhos sistemas que nunca foram de esquerda e que na verdade bebiam era no próprio capitalismo. Segundo, sim fomos programados para não reagir tanto por esse velho sistema do capital, mas também por inúmeros fatores culturais e sociais que precisam da massa quieta para “passar a boiada” e ninguém ver. E para piorar, o organismo humano adora um quentinho cômodo para não gastar energia física e intelectual. A nossa quebra precisa vir nesse ponto, reinventar as pessoas, ainda que pelo susto ou necessidade, mostrando como a capacidade humana é válida e potente. Como conseguimos nos organizar e transformar a história quando queremos. Quebrar essa polaridade e deixar claro que sim, todos somos criativos, mas existem barreiras que a sociedade vai nos impondo não para sermos apenas proletários obedientes (porque isso já virou argumento simplista), mas simplesmente porque foram nos ensinando que a vidinha normal era a correta e toda vez que levantávamos o dedo durante a aula ouviámos: tá no livro e não “experimente e tire suas conclusões críticas”.
Sem pensar muito, já soltei a minha.
EU: Legal. Pessoas experimentando e tirando conclusões é um risco para quem dá aula, para quem escreve livros didáticos, para quem dirige ministérios da educação e para quem indica ministros nessa área. Nosso problema não é o capitalismo em si. A essência desse sistema se mistura com a nossa própria, pois a vontade de tirar vantagem é algo humano, não que eu goste disso, mas somos assim. E negar isso é mentir para si mesmo. Afinal, todos adoramos quando o nosso time ganha do adversário. Ninguém gosta de ficar para trás. Adoramos tirar notas melhores que a do colega. Adoramos saber que a nossa casa é maior que a do vizinho, e por aí vai. Esse sentimento nos acompanha desde sempre. Talvez, por isso, todas as tentativas de comunismo pelo mundo falharam vergonhosamente. Somos competitivos e somos egoístas, mas somos cooperativos também. Achar o equilíbrio nisso tudo, seja em um novo capitalismo ou em um novo sistema com outro nome, será o grande desafio deste século. E a amarga oportunidade acaba de chegar. Se perdermos o bonde da história seremos lembrados como quem tropeçou bem diante da entrada do baile. O caos está instalado, e não existe oportunidade melhor para colocar a inquietação para energizar nosso espírito criativo e fazer algum tipo de revolução. Talvez a maior de todas, pois a sobrevivência do planeta depende das decisões que tomarmos hoje.
Enfim, nos despedimos, felizes com o inusitado debate de ideias.
Enquanto lia o papo sobre o texto inicial, tive um insight sobre o tema: reprogramar as pressas para agirem melhor sobre si mesmas e sobre o mundo em que vivem. Lembrei que tinha usado a metáfora do espírito que anima o corpo físico e aquele que anima as máquinas. Diferente de nossos simulacros eletrônicos, que precisam trocar de hardware à medida que o software se atualiza e expande possibilidades, nós, como seres biológicos, somos afetados fisicamente com o novo “software” instalado.
Quanto mais aprendemos, claro que se a informação for livre, carregada de positividade e aberta à experiência, seremos capazes de tomar melhores decisões. Imagine comer e dormir melhor, mudar a rotina e cuidar de seu corpo de forma mais adequada, adicionando vitalidade e novas capacidades físicas e emocionais ao seu “hardware”. Reprogramar pessoas pode torná-las armas ou gado, mas também pode fazer com que sejam anjos de sua própria salvação, capazes de revolucionar formas de pensar e transformar o espaço onde vivem.
E a soma disso seria um provável planeta saudável e disponível para as muitas gerações que esperam ter a chance de conhecer esse maravilhoso lugar, que todos sabem, está pedindo socorro, desesperadamente!