No Brasil, mais de 60 mil pessoas morreram vitimadas pelo coronavírus. O escritor carioca, Sérgio Sant’anna, é uma delas. Contista, ensaísta, romancista e o que mais chamam alguém de muito talento que pode escrever qualquer coisa, ele deixou uma obra crescente, onde seus livros desenterram misérias internas até que a fome, a dor, a impotência e a perversão se materializem em uma multidão. Não são mais características de personagens: são os próprios cidadãos dos lugares onde vivem.
“A Tragédia Brasileira” (Companhia das Letras, 155 páginas) dá conta dessa perspectiva de criação a partir de uma notícia corriqueira de jornal. A menina Jacira fora atropelada enquanto brincava na rua.
Se a história é simples, a opção do autor pela estrutura narrativa é puro experimento. Escrito como um “romance-teatro”, o livro espreme os dois formatos até sobrar apenas a imaginação febril de seu autor, atrás de questionamentos que perdoem os personagens reais que lhe valeram de inspiração.
De ato em ato, Sérgio levanta testemunhas para o assassinato acidental de Jacira. O homem que atropelou a menina sente um desejo luxurioso ao tentar salvá-la, já estirada na rua. A menina fugira de um negro, nordestino e tarado que estava do outro lado, num terreno abandonado. Isso é só hipótese. A polícia não sabe o que faz. Os pais habitam o palco, em cenas paralelas que desativam a compreensão cênica do público através da interferência de um Autor-Diretor.
O que, de fato, está acontecendo?
Da crise existencial para uma crise coletiva, Sérgio, o autor, se veste de Autor-Diretor porque sabe que faz parte da tragédia do país onde vive. Outro escritor menos inventivo, talvez, usasse essa metalinguagem como um artífice de compreensão para o leitor. Uma espécie de “tradutor” dos símbolos. Sérgio não: ele embaralha os significados até que esses atinjam a exata beleza da incompreensão.
A história é viva e ao vivo, transportando o leitor para o palco. Você que lê a resenha já participa da trama, ainda que em outro plano.
Em algum momento, o Autor-Diretor exemplifica:
“O teatro é uma coisa tão passageira que tem de ser tão boa que permaneça para sempre na memória das pessoas. […] tenta escrever uma peça que se desdobre indefinidamente na cabeça das pessoas, embora, à medida que essa peça avança, ele tema cada vez mais que ela não seja encenável a não ser em sua própria cabeça”. (Pag. 81)
O elenco dessa peça não-encenável, eternamente em cartaz nos becos e ruas; essa violência desmedida que avança pelo país num ato único, faz parte de uma trama que sempre foi mentirosa.
A raiz do Brasil é um roubo. Em vez de discutir, o escritor bota a ficção para dialogar com esses fantasmas: “também a verdade pode ser usada como mentira. Ou pelo menos como ardil”.
Compreensível mesmo na confluência entre romance e teatro é o quanto nós dispensamos símbolos originais em favor de outros. A religião – que nos forma até hoje – é entendida pela história de Jacira como uma redenção invisível. Transformada em santa, em “messias”, Jacira não se descola do seu futuro cheio de mágoas, pecados ou profanações. E o Autor-diretor não vê a morte da menina como um sacrifício, ainda que todos os outros personagens façam o oposto.
O ponto é: qual o tipo real de sacrifício é válido?. Um escritor, ator, pintor ou qualquer outro artista, pode verter pecados em rezas? É seguro fazer isso? A criação não seria por si só a maior das bênçãos, ou toda obra precisa ser compreendida para ser vivida?
Esses movimentos antropofágicos, ganham um coro ainda mais experimental no genial epílogo do livro. Ali, Sérgio coloca em seu palco movediço Buda, Cristo e Freud como personagens. Todos à serviço e unidos pelo ato de criar, não o de doutrinar.
O fim do espetáculo vem do ocaso dessa cena, onde algum tipo de narrador onisciente diz que os braços abertos de Cristo recepcionam as pessoas que caminham para “o caos que antecede o verbo”.
A história de Jacira se passa no Rio. Os braços abertos de Cristo é a esperança que sobra ao brasileiro. Olhar para acreditar. Os personagens não sabem o que fazem. Nós sabemos?
Em uma de suas últimas postagens no Facebook, sentenciou que “O Brasil é um filme de horror”. Um filme-peça. Um poema-novela. “Um conto abstrato”. A forma foi amiga da sua suspeição enquanto artista.
Com 60 mil mortos, Sérgio foi levado sem que nenhuma autoridade falasse sobre isso. O “Autor-diretor” que coordenou a despedida vaticina que a ficção dele, e também sua morte, deixam de herança este epílogo assustador: na nossa misturada cultura, com a nossa cruel elite, a tragédia é uma característica originalmente brasileira.
Outros livros de Sérgio Sant’anna que você precisa ler:
- O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro
- O Voo da Madrugada
- O Homem-Mulher
- Amazona
- Um Crime Delicado
Texto maravilhoso!