Se existem coisas que não faltam no mundo de 2020 são lives, TikTokers e a velha nostalgia daquele tempo bom que não volta nunca mais. Tendemos a ser benevolentes com o futuro, seletivos com o passado e extremamente duros com o presente, a despeito de todas as lições ensinadas em Dark, De Volta Para o Futuro e Kung Fu Panda. Reclamamos dos nossos políticos, da tomada de três pinos (sendo o do meio cada vez mais bombado), da Coca-Cola que consegue a proeza de ter um sabor diferente para cada uma de suas milhões de embalagens – e claro que nenhuma delas chega perto da KS do boteco tomada direto do bico após um dia quente (saudades).
Mas acima de tudo, reclamamos da falta de heróis de verdade. Tanto daqueles que têm capas e superpoderes (Walter Mercado?) quanto pessoas comuns, feitas de carne, osso e rotina. Essa é uma característica inerente a praticamente todas as profissões: não se fazem mais super-publicitários como nos tempos das grandes agências regadas a whisky e cigarro, nem jornalismo investigativo premiado. Não se fazem mais jogadores de futebol como Rivelino, Tostão e Pelé, nem atrizes como Fernanda Montenegro. A lista é tão longa quanto as enciclopédias e listas telefônicas, mas acho que você já pegou meu ponto.
Esse prelúdio longo e ranzinza foi só pra dizer que os heróis de verdade existem, e não estão voltando mês que vem em The Boys. Eles já se encontram entre nós, no streaming concorrente, nessa ode à vida fazendo cosplay de documentário chamada Crip Camp.
A produção, pré-indicada ao Oscar 2021, é do casal Obama – responsável também pelo vencedor da última estatueta, Indústria Americana. Quem dirige e narra a história é James Lebrecht, não por acaso um dos integrantes do acampamento mais inusitado que já habitou esse planeta. Me refiro ao Jened Camp, que entre 1951 e 1977, em plenos tempos de Woodstock, recebia pessoas com variados tipos de dificuldades motoras e mentais. Foi lá que o menino James e centenas de outras pessoas tiveram a oportunidade de ser elas mesmas, brincar, realizar pequenas tarefas domésticas e se divertir como se o mundo fosse também o seu quintal.
O Jened Camp forjou na base do amor toda uma geração de pessoas que, anos depois, liderados pela incansável Judy Heumann, lutaria pelos direitos daquela que é considerada a maior minoria do planeta. Tratados pelos monitores hippies com respeito e sobretudo como iguais, eles foram desenvolvendo poderes que à época pareciam super: se expressar, se apaixonar, casar, fazer uma pós-graduação e ter seus próprios ideais de igualdade e inclusão.
Deixo a tarefa de descobrir o desfecho dessa história com você, não sem antes dar um spoiler: com todas as suas limitações, por 26 dias, essas pessoas ocuparam um edifício federal na cidade de São Francisco, em protesto pacífico pela implementação da lei que fazia valer os seus direitos. Ao longo dessa jornada eles contaram com a ajuda dos Panteras Negras e de inúmeros grupos formados por outras minorias, que forneciam colchões, ítens de higiene e refeições para a luta continuar.
Se em 2020 uma parte dos acessos e leis de inclusão social e profissional existem, muito se deve à semente plantada no “Crip Camp”. Ao olhar o mundo com a lente do documentário, você reconhecerá heróis onde menos espera. E quando esse momento chegar, não deixe de dizer isso para eles – faz simplesmente toda a diferença.