No ótimo livro “Falso Espelho”, a digitalização da sociedade é só parte do problema

No ótimo livro “Falso Espelho”, a digitalização da sociedade é só parte do problema No ótimo livro “Falso Espelho”, a digitalização da sociedade é só parte do problema

Na mitologia grega, Narciso era um garoto muito bonito, arrogante, orgulhoso e metido que, ao se ver refletido num lago, definhou apaixonado pela própria imagem. O livro “Falso Espelho”, da escritora, Jia Tolentino, explica a criação do feitiço da ninfa Eco, que paralisou Narciso diante da água. 

O livro foi lançado neste ano pela editora Todavia, e reúne nove ensaios de Jia sobre autoilusão. O tema é difícil, escapole fácil numa mão mais fanática ou desatenta, mas o fio crítico das análises de Jia puxa o leitor – ou melhor, loga – na irrefreável digitalização do mundo.

O primeiro ensaio, “O eu na internet”, conecta a formação da identidade humana à internet, como se hoje fosse impossível viver sem a autorização de uma comunidade digital, de uma ampla rede de amigos e aprovação. “A internet é um meio em que o incentivo à perfomance é inerente. No mundo real, você pode simplesmente andar por aí vivendo a vida enquanto as outras pessoas olham pra você. (…) Na internet, é preciso agir.

A análise é múltipla. De maneiras muito fluídas, Jia troca de assunto com a mesma velocidade do universo que critica, sem perder o alvo. Da internet, ela pula para um conceito chamado “sinalização de virtude”. Segundo ela, um termo usado pelos conservadores para criticar a esquerda. O assunto é menos extremista do que parece. O alvo de Jia é mostrar como toda onda de solidariedade às causas humanas é divulgada pelos usuários apenas para mostrar como são boas pessoas. 

No ótimo livro “Falso Espelho”, a digitalização da sociedade é só parte do problema
Jia Tolentino, autora de “Falso Espelho”.

“Postar a foto de um protesto contra a separação de famílias na fronteira do México com os Estados Unidos, como eu fiz enquanto estava escrevendo isto, é uma ação microscopicamente significativa (…) e uma tentativa de mostrar que sou uma boa pessoa”. É um upload na frase de Descartes, que vira “penso, logo, existo”. 

Jia está certa. Ninguém mais hoje demonstra solidariedade na internet sem se descolar da autopromoção. Inclusive, ela ressalta que os mecanismos sociais que realmente mudam grandes políticas ou corporações – como as greves e os sindicatos – se diluíram numa rede fadada à combustão. A gente gosta de mostrar que é bom, lutar de verdade por isso é outro papo. “Você não usaria uma notícia sobre um bebê morto para, na verdade, falar de privilégios brancos se não pertencesse a uma sociedade na qual o discurso sobre justiça chama muito mais a atenção do público do que os próprios fatos que exigem justiça”, sentencia Jia. 

A escritora tem 32 anos. Uma millennial, os nascidos na transição entre on e off. Essa participação dela, como uma jovem que viu os primeiros reality shows – e, inclusive, participou de um, como conta no segundo ensaio, “Entrando em um reality show” – dá um peso diferente aos temas. Menos crítica do que Manuel Castells, obviamente, um estudioso sobre as deformações da mídia na sociedade, mas como uma verve apurada sobre os efeitos que vive e causa, Jia usa essas vivências para atingir uma crítica mais amarga do que teórica. Esse é um dos pontos mais interessantes do livro: ela faz parte desse fluxo ininterrupto de informação. Como editora da revista Jezebel e estudante de jornalismo, frequentou as aulas usando celular, tendo facebook. 

As redes sociais tomam boa parte de “A história de uma geração em sete golpes”. Se o primeiro texto falava de uma experiência individual, neste ela aborda como a ação de alguns indivíduos geram surtos coletivos. A começar pelo criador do Facebook. “A característica mais evidente de (Mark) Zuckerberg é a falta de uma personalidade discernível”. Essa capacidade de não revelar suas verdadeiras intenções foi um golpe bem aplicado, uma vez que “a nossa atenção está sendo vendida aos anunciantes”. 

No ótimo livro “Falso Espelho”, a digitalização da sociedade é só parte do problema
Mark Zuckerberg, personagem retratado no livro “Falso Espelho”.

Nesse texto, Jia ainda disseca como os líderes disruptivos, na verdade, dizimaram a noção das pessoas. A crítica sobre as relações de trabalho e serviço da Amazon, Uber e Airbnb são contundentes o bastante para que o leitor amargue a admiração por essas marcas quase que instantaneamente. 

Ainda que ela não tenha escrito “Falso Espelho” sob à luz da pandemia, seus textos tratam dessa cultura que já vivia em isolamento social antes dela. Veja bem: em vez de ir ao supermercado, pedíamos pra entregar em casa. Com comida, a mesma coisa. Livro, roupa, vinho e qualquer outro serviço também. 

O isolamento já acontecia. Só era vendido como facilitação e se tinha a escolha de sair de casa, não necessariamente de conviver com alguém. 

No último texto, Jia trata do relacionamento mais antigo do mundo: o casamento. Mas, como a maioria dos ensaios, bota sua lanterna nos cômodos fora da casa perfeita, de como a mulher foi empurrada para o casamento e de como a tradição virou a única data onde ela é incentivada a fazer o que quiser. É o dia dela, não? 

No ótimo livro “Falso Espelho”, a digitalização da sociedade é só parte do problema

Os textos tem, sim, um olhar feminino e feminista. No mais exaltado deles, “Viemos da Velha Virgínia”, a abordagem é sobre a onda de estupros na universidade de Virginia, onde ela estudou. Em “O culto da mulher difícil”, o jogo é pela forma terrível que a beleza e o corpo da mulher são tratados. Em “Heroínas Puras”, Jia volta-se para as personagens da literatura. 

O que separa cada texto de um tratado comum é justamente o maravilhoso talento narrativo de Jia Tolentino. É magnético como a escritora abre portas e mais portas, para fechar todas na nossa cara com uma conclusão original. Transita entre política, cultura pop e teorias filosóficas, com a naturalidade de quem faz dublagem no Tik Tok. Sobretudo, ela organiza dados e opinião com um frescor e tanto. Mas é um deleite assustador, pra não dizer, triste. O futuro que Jia antecipa em cada ensaio é o de uma sociedade ilhada na ilusão de que a tecnologia revigora relações, diminui distâncias e iguala o acesso de todos a tudo. 

Ao botar o leitor de cara com o lago, “Falso Espelho” é um livro sem arrogância ou orgulho, que não afoga o leitor por sarcasmo da autora. Faz pior: mostra aos “jovens atraentes” que o rio pra onde eles olham é podre, fétido e repleto de lixo. 

5 comments

Deixe um comentário