O dilema das redes não seria a própria sociedade?

O documentário “O Dilema das Redes” lançado pela Netflix semana passada parece que tem causado efeito. Tem gerado debate e reflexão.

O documentário “O Dilema das Redes” lançado pela Netflix semana passada parece que tem causado efeito. Tem gerado debate e reflexão.

Quem não sabe do que se trata, sugiro o artigo publicado pelo Wagner Brenner aqui no UoD. Ele abordou muito bem a proposta do documentário. Desta vez eu não quero fazer aqui um review ou uma crítica, mas explorar alguns aspectos e propor outras reflexões.

Dificilmente ele alcançará o sucesso de Black Mirror, mas seu valor é similar: será tema de muito bate papo por aí e vai ajudar a grande massa a desenvolver um olhar crítico em relação à estrutura das redes sociais.

Esse olhar crítico é urgente. As redes foram construídas para prender nossa atenção e acabam por amplificar problemas como a polarização e a desinformação. Precisamos ter consciência crítica sobre essas questões para deixar de ser meros funcionários dos aparelhos tecnológicos, como disse o filósofo Vilém Flusser nos anos 80.

Me parece que é esse o momento que vivemos, deixando aos poucos aquele deslumbramento inicial, em que as redes sociais eram consumidas sem freio, sem filtro e com muita ingenuidade, justamente por não a conhecermos plenamente. Temos ainda um longo caminho a trilhar até alcançar a maturidade.

Num papo com Paulo Cuenca, ele lembrou como é curioso pensar que a Netflix monitora constantemente seus usuários para entender seus comportamentos e gostos, e usa essa informação para produzir novos conteúdo. E foi desse processo que surgiu “O Dilema das Redes” ou seja, para atender os anseios de um público que já perdeu aquele deslumbramento inicial e agora vive uma fase de gosto pela distopia. É chique criticar.

Outro ponto interessante que o documentário evidencia é que grandes críticos das redes sociais são ex-funcionários, ou seja, o próprio mercado tech das plataformas sociais está produzindo seus críticos. Acho benéfico pois serão capazes de influenciar seus pares, vide o “Center for Humane Technology”, fundado por um dos personagens do documentário, Tristan Harris (ex-Googler), que luta pela responsabilidade ética das plataformas e já conseguiu impactar positivamente, sendo indiretamente responsável pela implementação do recurso de controle do tempo de uso dos devices e apps.  

Como bem lembrou o pessoal do Youpix, eles também procuram conscientizar a população, oferecendo por exemplo o projeto “Take Control” que dá dicas simples de como evitar o vício das redes.

A meu ver, “O Dilema das Redes” direciona nossos olhares exclusivamente para as redes sociais, mas se quisermos de fato nos salvar da angústia e do vício causado pelas redes acho importante entender que esse é um problema complexo em que as redes sociais são apenas um dos elementos. Há outro crucial que é a própria sociedade.

Nas últimas décadas vivemos um processo longo e gradual de transformação social que nem sempre é percebido. Como disse outro filósofo famoso, Zygmunt Bauman, entidades que antes eram sólidas, foram diluídas, ou seja, foram fragmentadas em infinidades de possibilidades relativas. Nesse cenário, perde-se as referências que existiam e o indivíduo passa então a se ver sozinho no mundo, tendo que fazer escolhas dentre uma infinidade de possibilidades. Esse é um processo extremamente angustiante. E segundo diferentes teóricos, a principal razão dos altos índices de depressão.

A forma como nossa sociedade encontrou para se organizar nesse novo mundo foi a partir da tomada de decisões baseadas na validação de suas escolhas com outros indivíduos iguais a ele. É aqui que as redes sociais entram como um elemento importante: elas conectam as pessoas que sentem por natureza própria, o impulso de compartilhar suas ideias e opiniões para validá-las. Assim, me parece que o dilema das redes seja a própria sociedade que a criou.

Nossa angústia não será resolvida apenas com a restruturação das plataformas sociais, mas a partir do momento em que conquistarmos consciência crítica sobre esse processo complexo para assim, ser capaz de assumir o controle dos nossos impulsos, para determinar com melhor clareza o objetivo que pretendemos alcançar, cada vez que acessamos a rede.

Para encerrar deixo uma sugestão que é citada no documentário: experimente desabilitar as notificações do seu celular. Você logo notará ter mais controle da quantidade de vezes que pega no celular. Já é um bom começo.

4 comments
  1. “Estar no controle” apenas desativando as notificações é relativo. Penso isso jsutamente pelo viés social das plataformas. Ou seja, estamos presentes lá, digitalmente, independente das notificações estarem ligadas ou não. E não podemos negar nossa existência digital ao outro, ao indivíduo que propõe a interlocução através da plataforma. Isso é razoavelmente diferente do monitoramente do perfil de usuário que a Netflix realiza. A presença numa rede de interação social sem os usos que ela oferece é uma existência ainda mais passiva, onde o indivíduo se torna ainda mais produto. 

    Na verdade, a tentativa de comparação com o uso de dados da Netflix não passa de uma falácia com apelo a hipocrisia, ainda mais vinda de quem tem sua receita financeira justamente baseada nas próprias redes. O sujo falando do mal lavado.

    1. Isso. O algoritmo é um elemento a se considerar, mas não o culpado com exclusividade. Muito do que se passa nas redes vem da nossa própria construção de identidade. Apesar de ser estranho pensar assim, há de se considerar que a construção da nossa identidade passa por como somos vistos pelo outro. Ou seja, essa relação com o outro é essencial e no mundo das redes ela ganha novos matizes (positivos e negativos).

  2. Faz anos que desativei as notificações do celular, é uma liberdade! Você precisa mostrar que você está no controle, não o contrário. É preciso olhar as redes de uma forma ativa, não passiva. Dois hábitos que procuro adotar são o de pensar onde especificamente vou navegar antes de pegar o celular e o de colocar períodos do dia onde me permito acessar mais livremente. Não funciona sempre, mas é um começo.

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