O bar estava quase vazio. A noite estava muito fria e eu preferia estar em casa. Mas, por algum motivo achei que seria bom vencer a preguiça e participar do happy hour promovido pela escola da moda que eu estava frequentando havia algumas semanas, mas cujos colegas ainda conhecia pouco.
-Alguém aqui sabe falar inglês para ajudar esse gringo?
Eu, que já estava me sentindo entediada naquela festa flopada e que não tinha muitas oportunidades de exercitar meu segundo idioma, me voluntariei de bom grado. Logo, aquele menino loiro e que parecia ter menos de vinte anos aproximou-se. Eu o ajudei a fazer seu pedido ao garçom e em seguida engatamos naquela conversa trivial de “o que está fazendo no Brasil? Está gostando daqui?, etc”.
Em poucos minutos ficou claro que eu tinha pouco repertório para seguir naquele papo. Não apenas pela barreira do idioma, mas porque as coisas que ele falava me pareciam um tanto estranhas, ou até mesmo delirantes. Apesar da aparência extremamente jovem, ele me contou que era futurista – o que na época era uma profissão ainda mais incomum do que é hoje em dia. Depois, me contou que estudava robôs, mais especificamente como eles iriam substituir o trabalho humano. Mas, não apenas os trabalhos mais operacionais como dirigir um carro, como também os trabalhos mais subjetivos como compor uma música ou criar uma peça publicitária.
Eu duvidava. Sendo uma profissional de propaganda, eu sabia quanto conhecimento e criatividade eram exigidos neste trabalho. Levaria muito tempo para que um robô conseguisse alcançar este nível de complexidade. Até lá eu já estaria morta ou aposentada – pensei. Mas, como eu não queria parecer desinformada ou ultrapassada diante daquele menino que revelou ser um gênio em poucos minutos de conversa, procurei não demonstrar tanta desconfiança. Comentei apenas que sabia pouco sobre o assunto, mas que tinha ouvido falar muito bem sobre um livro de um escritor italiano que tratava sobre este assunto e que eu pretendia lê-lo em breve. O título era “Os robôs vão roubar seu trabalho, mas tudo bem“. Ele sorriu e disse: conheço este livro, fui eu quem o escreveu.
Passaram quase 10 anos desde que tive este improvável diálogo com o futurista Federico Pistono. Era a primeira vez que eu ouvia falar sobre inteligência artificial sem ser em obras de ficção e, por isso mesmo, aquele assunto ainda me parecia distópico e irrealista. O tempo provou que ele estava certo em suas apostas e eu enganada em minha desconfiança. O que eu julguei que levaria um século aconteceu em menos de uma década. Hoje os robôs já são uma ameaça real ao emprego de muita gente na indústria criativa. Mas, diferente dos humanóides de lata que eu imaginei enquanto conversava com Federico, os robôs que podem roubar nossos trabalhos não têm rosto nem corpo. São algoritmos de inteligência artificial extremamente sofisticados que alimentam softwares como o Chat GPT-3 ou o Dall-E, que foram abertos ao público há poucos meses e já causaram grande frenesí.
Apesar de ter muita curiosidade, eu continuo tendo pouquíssimo conhecimento técnico sobre a inteligência artificial. Mesmo assim, imagino inúmeros cenários nos quais estas ferramentas podem otimizar as tarefas mais difíceis do meu dia a dia e até substituir as mais fáceis. Vamos pegar a pesquisa secundária como exemplo. Todos os projetos que realizamos na Cordão (consultoria de marca que fundei há alguns anos) começam com uma extensa busca das informações que estão disponíveis na internet. Esta é uma tarefa relativamente simples, mas muito trabalhosa pois requer buscar, ler, avaliar a utilidade, avaliar se a fonte é atualizada e confiável para só então apresentar ao cliente de forma organizada. O ChatGPT-3 é capaz de manter diálogos complexos fornecendo informações precisas, organizadas e com pensamento crítico. Com as perguntas certas, uma busca de dados que levaria semanas pode ser feita em, literalmente, segundos.
A escrita de textos, artigos, trabalhos acadêmicos, títulos, slogans, manifestos ou post de redes sociais já está sendo feita por uma inteligência artificial neste exato momento em que me dou ao trabalho de escrever pessoalmente estas linhas. E nem é preciso do Chat GPT3 para isto, softwares mais simples como o copy.ai dão conta do desafio com facilidade. Muitos amigos redatores, inclusive, já me confessaram estar usando a ferramenta como dupla criativa para o brainstorm nestes solitários tempos de trabalho remoto.
Já o universo das ilustrações, artes e fotografias já está sendo dominado pelo Dall-E, Midjourney ou até mesmo com Lensa – aplicativo que viralizou vendendo retratos criados por sua inteligência artificial. Os vídeos e áudios também já contam com seus próprios robôs, desde o Nvidia Maxine que recria a imagem do ator olhando para a câmera (mesmo que esteja lendo um texto na tela ao lado) ou Designs.ai Speechmaker que cria locuções realistas à partir de textos ou Adobe Podcast que equaliza o som deixando-o perfeito. Recentemente vi a iniciativa da agência Addiction que treinou seu algoritmo para criar estratégias usando a ferramenta “Pirâmide de Marca”. O mesmo poderia ser feito com outras ferramentas de referencial teórico como Golden Circle, o prisma de marca de Kapferer ou um sistema de marca do Aaker. As possibilidades são infinitas.
Nesta biblioteca já estão catalogadas mais de 700 ferramentas de inteligência artificial para uso criativo. Assim, é fácil imaginar um futuro próximo no qual todas as marcas terão sua própria inteligência artificial, programada com a identidade verbal e visual para criar peças publicitárias e otimizá-las com testes A/B conforme o público, o canal e os objetivos. É possível que muito em breve vamos automatizar grande parte do trabalho das agências, principalmente no desdobramento de campanhas.
Hoje vejo que aquele jovem futurista que encontrei por acaso há dez anos atrás estava certo ao afirmar que os robôs poderiam roubar nossos trabalhos na indústria criativa em um futuro próximo. Mas, como sou cabeça dura, não aprendi minha lição e continuo a discordar. Observando a forma como a tecnologia está evoluindo não acredito que os humanos serão simplesmente “trocados” por robôs, mas sim que a forma como trabalhamos será profundamente transformada. Tarefas cotidianas serão automatizadas, novos cargos, especialidades e campos de trabalho serão criados. Muitos profissionais e empresas serão incluídos em um mercado pulsante de produção de materiais criativos baratos, rápidos e eficientes. E, talvez com o tempo, o imperfeito e manufaturado volte a ter valor como contra-tendência.
Eu já disse aqui que não sou especialista no tema e que minha avaliação sobre o futuro nem sempre se mostrou certeira. Mas, munida da coragem dos que pouco sabem, me atrevo a afirmar que os robôs não vão roubar os nossos trabalhos na indústria criativa. Mas, os bons profissionais que souberem colaborar com os robôs para elevar a criatividade e produtividade ao máximo provavelmente vão. Por isso, mesmo que não percamos nossos empregos para uma inteligência artificial, não está tudo bem. Precisamos nos mover com velocidade pois a verdadeira ameaça não são os robôs – e sim a nossa própria resistência a eles.
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