Em 1998, em alguma segunda-feira do ano, folga do meu pai, a família inteira viajou 90 km até à capital do estado onde a gente morava só para ver Mulan. A animação da Disney foi o primeiro filme que eu vi no cinema.
Sammy Fabelman, uma criança com muito medo das pessoas gigantes, assistiu O maior espetáculo da Terra, um dos maiores clássicos do cinema, dirigido por uma dos criadores do próprio cinema, Cecil B. DeMille.
Eu não virei diretor de cinema, mas depois daquele dia vi muitos filmes dirigidos por Sammy Fabelman. Quando realiza suas obras, o personagem troca o nome para Steven Spielberg.
A história de Os Fabelmans (The Fabelmans, 2022) é muito simples. Vivendo em uma família numerosa, o pai de Sammy é um gênio da computação. A mãe, uma pianista talentosa que largou tudo para cuidar dos filhos, no entanto, parece desencaixada da vida que escolheu. Vem o divórcio.
Os Fabelmans é um conto da infância do próprio diretor. Ele, que se acostumou a inventar fábulas, agora permite ao público que o acompanha há mais de 40 anos espiar o fotograma da sua mente; as cenas emocionantes que ficaram longe das projeções final, mas foram essenciais para que ele desenvolvesse um estilo único de contar histórias, aqui são tolhidas em uma rotina calma, lúdica.
Antes dos créditos iniciais, Spielberg agradece o público por assistir este filme em um cinema.
É um ato mais do que simbólico. Depois de dois anos castigado pela pandemia da covid-19, o Cinema, que já era ameaçado pelo vírus do streaming, estava desacreditado pela maioria das pessoas.
Spielberg não filma Os Fabelmans como um protesto. Sua obra nunca é pesada ou militante, ainda que faça recortes com posições nítidas sobre o que ele acredita. Neste momento, o diretor está confortável para oferecer ao público a razão dele não parar de trabalhar e usa o próprio fascínio como meio de convencimento para o público marcar presença. Obrigado por assistir este filme em um cinema.
É poderoso ver como o gênio criativo de Sammy é tecido no mais ordinário da vida. Mais ainda, em como o convívio com a família foi importante para que ele treinasse seu olhar, sua direção, seus temas universais, como crescimento, sofrimento e família, trabalhados em praticamente todos os filmes ao longo da carreira.
Spielberg é um autor raríssimo. Inventou o blockbuster com Tubarão e Contatos Imediatos do Terceiro Grau, quase afundou a carreira com a sátira 1941, ganhou Indiana Jones e Os Caçadores da Arca Perdida de presente do amigo George Lucas. Escreveu Os Goonies. E, em 1994, fez até hoje uma das coisas mais sensacionais que um humano pode ver no cinema: Jurassic Park. Só pra ter uma ideia, 30 anos atrás o diretor usou Dinossauros reais, em vez pastiche tecnológico que empurram pra gente, e atingiu um efeito dramático que nenhum filme da Marvel, DC ou as próprias sequências da franquia chegaram. Podia ter parado aí. Que nada! Os 45 minutos inicias de O Resgate do Soldado Ryan são uma pintura renascentista. É uma capela cistina! E mesmo quando faz filmes pouco vistos (baseado na régua dele, tá?) Spielberg entrega uma obra-prima como é Munique.
De onde vem a inspiração pra tanto? Pra mim, em um dos momentos mais bonitos de Os Fabelmans, enquanto a avó padece em uma cama de hospital, Sammy está vidrado nos batimentos dela, na veia do pescoço saltando até que a vida desapareça do corpo. A interpretação de Gabriel LaBelle é tão boa, que em poucos segundos o ator transborda sua consciência: “onde está minha câmera?”. É um dos momentos onde o personagem cresce cinematograficamente e a definição dita pelo Sammy menino de que cinema é uma porção de fotos em movimento ganha outro status. Um filme é um flagrante do interior. Em qualquer gênero ou estilo. Paul Dano, interpretando o pai de Sammy, também elabora um personagem contido, respeitoso. É lindo de ver.
Escrito pelo diretor e o parceiro de longa data, o aclamado Tony Kushner, Os Fabelmans tem um texto limpo e sensível. O ótimo roteiro é filmado com enorme apuro técnico, como sempre é esperado. Mas, é quase uma novidade como Spielberg faz isso.Tudo é íntimo, pequeno, e ao mesmo tempo, apaixonado.
Paixão. O cinema é um tipo de anagrama para paixão. E quando ela resvala da tela, o público passa por todo o tipo de sentimento durante a história contada. Mas, quando a luz acende, é a paixão que domina.
Guillermo Del Toro levou 10 anos para filmar sua versão de Pinóquio, na Netflix, uma das mais belas animações já feitas. James Cameron trabalha em Avatar desde o fim de Titanic, em 1997. A segunda parte, ainda em cartaz nos cinemas, ficou pronta mais de 12 anos depois da primeira. É o cinema como um espetáculo mesmo.
Spielberg, à sua maneira, ilumina em Os Fabelmans esses e tantos outros exemplos. O que faz um diretor de 76 anos, dono de uma das obras mais criativas, enérgicas e admiráveis do cinema, de uma versatilidade igualmente impactante (ele fez Parque dos Dinossauros e A Lista de Schinder no mesmo ano!), topar o imenso desafio de ainda criar para o cinema precisa ser compartilhado com o público que assiste é a paixão. E a última cena…. ah, é poesia pura!
Após aquela sessão de O Maior Espetáculo da Terra, Sammy parecia abduzido para outro planeta. E eu sei bem como se viaja pra lá.