Em “Sismógrafo” (Editora Macondo, 248 páginas), de Leonardo Piana, Edu volta a sua cidade natal para entregar algumas fotos do amigo e namorado, que faleceu. Seu encontro com a mãe de Tomás acontece somente nas últimas páginas do livro, mas durante o curto período em que permanece em Andradas, no interior de Minas, ele faz uma espécie de estudo geológico do corpo masculino. Isso porque o corpo do outro – e agora a ausência – ainda é para Edu um território tectônico, desconhecido e perigoso, cuja movimentação racha o alicerce onde foi construído quem ele é.
Antes de Tomás, os abalos que Edu sentia dentro de si podiam ser controlados. Mas foi a partir de uma conversa entre as “piscinas sujas do Clube Rio Branco” que o tremor ficou mais intenso. O detalhe das condições físicas do lugar não é por acaso. Essa “sujeira” vai categorizar o desejo de Edu (“me deitei ao seu lado, sobre a sujeira de um concreto muito confortável”), suas relações familiares (“mãos sujas feito as mãos do meu pai”), escolares, sua intimidade com Deus, e, sobretudo, a dívida com a própria cidade (“um menino sujo improvisado como tudo naquele lugar”).
Andradas é um personagem inescapável do romance. Bastante católica, ao longo do livro a cidade posiciona-se como um deus onisciente e onipresente, regendo este retorno de Edu na forma de uma procissão invertida: o adulto não volta em busca de perdão para o menino interior, mas para desobstruir seus pecados. Nesse romance de formação, o estudo geológico do corpo masculino, conforme dito, é feito da união entre o homem e a sua terra.
Para bancar o peso dramático mantendo distância das convenções do gênero – ou dos rótulos – o autor intercala os capítulos entre a adolescência e maturidade do personagem, criando um registro delicado, livre de observações comuns mesmo quando a dinâmica das experiências de vida, como viver o primeiro amor, é repetida.
“Já não me arrasaram mais os pecados infantis: a imaginação não alcançava (eu tratava de me convencer todos os dias de que não alcançariam nunca, em Andradas) o ato, mas era, isso sim, incomodado pela frequência com que se manifestava aquele bicho voraz até percebê-lo comum entre os meninos da minha idade”.
Se a descoberta da paixão é parte do desenvolvimento de Edu, seu isolamento me parece um tema ainda mais forte. Há um fato na história – também envolvendo uma foto – que maximiza o drama do personagem. O deboche e a tortura dos outros garotos, o relacionamento estranho com os pais, os acontecimentos inerentes à puberdade e a falta de tato social para lidar com o ambiente hostil ficam cada vez mais intensos. Leonardo Piana trabalha o elemento fotográfico desse “álbum” como um mapa para localizar as sensações de Edu entre passado e presente, e equiparar a geografia de Andradas em um tipo de sentimento. As descrições minuciosas são as coordenadas para fazer esse jogo ficcional difícil até o fim.
Durante boa parte da leitura de “Sismógrafo”, me lembrei dos versos de outra autora, Ana Miranda, que escreveu: “E quando ali retornarmos, verás que nunca nos fomos. Pois o lugar onde estamos, o lugar onde estaremos, é sempre o lugar que somos.”
Tal investigação de Leonardo Piana vai pela mesma estrada: de Andradas, ou outro lugar de origem, não dá pra fugir. Você perceberá o terremoto de qualquer ponto do mundo. Mas depois que o tremor passa, algo sempre há de nascer debaixo dos escombros.