Em um dos capítulos do seu livro “Simulacros e simulação”, Jean Baudrillard explora o papel dos hipermercados como elemento de composição da sociedade. Grosso modo, compara-os a uma linha de montagem, apresentando um roteiro de comportamentos que funciona em uma cadeia de circuitos aleatórios, mas que passam de um ponto a outro, como em uma cadeia de produção – uma “simulação operacional da vida social”.
Ainda segundo o capítulo do livro (e considerando o momento em que foi escrito, 1976), os hipermercados, assim como o shopping centers converteram-se em núcleos agregadores das cidades, ao redor dos quais se estabeleciam estruturas de tráfego e deslocamento que contribuíam para o que Baudrillard nomeava como “aglomeração”, um simulacro da sociedade nestes espaços de consumo.
Neste cenário, o espaço de compra acabou por extrapolar as mercadorias compradas, ou mesmo o próprio processo de aquisição de bens.
Quando pensamos nos onipresentes hipermercados e shopping center do passado, podemos reconhecer não apenas um espaço para compra e consumo de mercadorias, mas um sistema social que se utilizava de simbolismos, signos e estímulos; em parte, sim, em prol do estímulo à compra, mas, como parte deste ritual, indo muito além, contribuindo para um senso de presença e pertencimento que saciaria não apenas a necessidade de consumo, mas satisfazendo a inerente carência social, a essencialidade da consciência de existir e pertencer.
A TRANSFORMAÇÃO DO RITUAL DE COMPRA E OS ASPECTOS SOCIAIS DAS LOJAS E SHOPPING CENTERS
Ao digitalizarmos grande parte do processo de compra, por um lado, a transformação dos espaços físicos em “centros de experiência” foi catalisada, reduzindo a sua relevância utilitária (relacionada a funcionalidade de compra) para um local de consumo de provocações sensoriais e compartilhamento de experiências sociais, incorporando serviços, além dos espaços de entretenimento. Aqui, deixo Baudrillard, para argumentar que a aquisição de produtos, então, passaria a ser coadjuvante da vivência social destes espaços.
Inicialmente, compras utilitárias e comoditizadas migraram para o novo canal – afinal, a TV modelo XPTO2342 será a mesma, nas Casas Bahia do Boulevard Shopping Belo Horizonte, no Iguatemi Esplanada de Sorocaba e na Amazon -, alimentando o fenômeno de showrooming, que ainda não está bem digerido ou solucionado pelo varejo – isto vai além do match de preços com sites de e-commerce (Gensler, Neslin & Verhoef, 2022), e merece um texto próprio 🙂.
Na sequência, compras hedônicas (Hirschman & Holbrook, 1982) e produtos que, até então, tinham um alto NFT (Need-for-touch – preferência por obter informações por meio do tato ou sentido háptico, essencialmente com as mãos (Peck & Childers, 2003)), passam a fazer partes das cestas online.
Desde 2003 leciono temas ligados a marketing e negócios digitais. Neste ano, ao perguntar “quem de vocês já comprou online algo que não fosse um livro?” para alunos/as por volta de 25 anos, apenas algumas mãos se levantavam. Em 2012, ao mostrar o recém lançado Tinder para a sala, as respostas permeavam pensamentos como “Ai! Imagina que alguém vai usar isso! Que perigo!”.
O mesmo ocorria ao se questionar sobre a compra online de roupas, calçados… carros! Hoje, ferramentas de auxílio à compra reduzem risco percebido e até mesmo modulam o NFT dos/as consumidores/as.
A popularização e aceitação de que qualquer coisa pode ser vendida online, mas também que pode ser comprada online (note que há uma diferença nestes pontos de vista!) fez com que o ato isolado de comprar algo seja, antes de tudo, uma questão prática – ainda que siga sendo impactada por fatores cognitivos, emocionais e habituais.
Ao olharmos os espaços físicos, um shopping center não mais teria como atrativo principal vender produtos, senão, gerar uma sensação de embriaguez pelos estímulos visuais, sonoros ou olfativos, e no próprio fluxo de pessoas a caminhar por seus corredores. O mesmo ocorre com hipermercados, locais de descoberta e estimulação sensorial contínua, por meio das coloridas e chamativas embalagens e pelo movimento quase orquestrado de carrinhos por seus corredores.
Ao transpormos tal experiência para o ambiente digital, a representação digitalizada desses espaços, resolvemos facilmente os aspectos práticos da compra. De fato, sobretudo quando as variáveis racionais que direcionam o processo decisório podem ser apresentadas ou moduladas por meio de ferramentas de auxílio à compra (comparadores, espelhos virtuais, formulários para personalização, etc), a simples aquisição de bens pode facilmente ser feita em quatro cliques, sem o ônus do deslocamento físico.
Os grandes sites de e-commerce, em suas estratégias de one-stop-shop (Ermetel, 2022), abarcando o máximo de categorias de produto possível, com estoque próprio ou, principalmente, por meio da atuação como marketplaces, seriam a versão digitalizada deste núcleo de aglomeração.
Contudo, para se tornar realmente a versão digitalizada de um shopping center ou hipermercado, havia que se trabalhar a sensação de presença do outro. A aglomeração de Baudrillard que, apartando-me de sua crítica, converge o movimento social.
A SENSAÇÃO DO SOCIAL EM LOJAS VIRTUAIS
Como dito, os espaços físicos de consumo possuíam funções que iam além dos produtos e mercadorias. O que faltaria a estes espaços virtuais, então, seria incorporar o senso de presença, romper com a separação de ambientes causada pela tela, que também restringe o sequestro do foco atencional por meio de estímulos multissensoriais. Até o momento, o virtual diretamente direciona a visão e, eventualmente, a audição; ainda que se possa explorar a complementação sensorial de forma indireta (alias, crosslink para artigo sobre uso de marketing sensorial em ambientes digitais).
Baudrillard comentava que os espaços físicos como fábricas e universidades, assim como, posteriormente, hipermercados e shopping centers, adquiriram uma finalidade polifuncional. As dinâmicas destes espaços, fechados em uma sequência de presentes contínuos, constituiriam uma hiperrealidade própria.
Já nos espaços virtuais, isto seria parcialmente atendido pelo compartilhamento de experiências e de um universo comum, ou seja, a percepção de que não se está sozinho naquele espaço mas, assim como nos hipermercados e shopping centers, partilha-se um momento comum, um espaço-tempo que possui suas próprias dinâmicas e em que o comportamento de um influencia o comportamento de outro.
E aqui postulo que o encurtamento do espaço-tempo por conta das tecnologias digitais não se dá apenas de forma linear, na percepção contínua da passagem do tempo seguindo a flecha natural da entropia. A permanência de informações que permite a comunicação assíncrona constrói uma cronologia não linear da convivência social nestes espaços virtuais de compra. Eu não estou naquele momento, mas os conteúdos que gerei me representam no tempo particular de cada usuário/consumidor e me colocam como interlocutor assíncrono. Nos fazemos continuamente presentes pelas marcas que deixamos na tela.
Já que não há uma percepção síncrona de interação em um espaço-tempo próprio no ambiente virtual, as avaliações, fotos enviadas pelos usuários, indicações do que também compraram, entre outras funcionalidades, conferem a estes espaços um senso de copresença e comunidade.
Tais funcionalidades, encontradas com frequência em websites de comércio eletrônico, extrapolam o propósito de auxiliar no processo decisório como prova social e redução de risco percebido. Elas também provém senso de comunidade, a sensação de uma experiência compartilhada. A troca de ideias de uma ágora grega tornou-se compartilhamento de opiniões em páginas de produtos.
Mais do que isso, a incorporação de ferramentas de suporte social (Adaji & Vassileva, 2016) em websites de e-commerce, como aprendizado social, comparação social, influências normativas (gerando pressão entre os pares), mecânicas de cooperação, competição e reconhecimento, reforçam a relevância dos aspectos relacionais da experiência. Se os hipermercados eram um simulacro da sociedade, os websites de e-commerce seriam um simulacro do simulacro.
Logo, o Social Commerce não seria, então, apenas um conjunto de ferramentas operacionais de recomendação, mas ferramentas de validação social, reconhecimento, pertencimento e aceitação.
O número de estrelas na avaliação de um produto não serve apenas para indicar gostos e desgostos – já que, de certa forma, há muita subjetividade nisto. Elas abrem espaço para concordância ou discordância (inclusive com pessoas defendendo suas opiniões sobre produtos como se as divergências lhes atacassem pessoalmente – outro tópico para outro texto). As narrativas das experiências de alguns consumidores são portas de entrada para um diálogo centrado na mercadoria – os produtos não são apenas produtos, eles são assuntos sociais. Falar sobre os produtos, compartilhar fotos desses produtos em sua casa tornaram-se a versão capitalista do álbum de fotos da família.
Tal exposição do eu, entretanto, considerando os riscos associados à privacidade, podem ir além da relação do indivíduo para com o produto comprado ao tratar o/a consumidor/a como personagem coadjuvante do sistema de consumo.
Como mais uma oportunidade para existir e pertencer, tais espaços virtuais de compra poderão, em breve, se tornar as novas ‘redes sociais’, cuja centralidade será constantemente alternada entre o indivíduo no seu papel de consumidor/a, ou melhor, em sua vida impactada pelas mercadorias, e nos produtos em si, não mais (apenas) utilidades funcionais ou expressivas de valor, mas também artefatos de construção de um eu público, como espaços instagramáveis, molduras em pontos turísticos e tantos outros instrumentos usados na criação de uma realidade simulada.