Baiana System em São Paulo

Estreando a nova turnê, o grupo fez um dos shows mais imponentes do cenário atual.
Person wearing a geometric mask with abstract patterns in blue lighting. Person wearing a geometric mask with abstract patterns in blue lighting.

Prestes a embarcar para a Europa, o BaianaSystem fez parada em São Paulo, nos dias 03 e 04 de maio, para “testar” a nova turnê. “Nossa cultura em primeiro lugar” tanto mostra o bom momento, como aponta um futuro diferente desses artistas que precisam “comer” a cultura brasileira em cada parte do processo criativo. 

O “manifesto antropofágico” de Oswald de Andrade propunha “regurgitar” a cultura europeia que até então alimentava o Brasil em algo tipicamente nosso. Definir o BaianaSystem como “antropofágico” conceitua e até afina a proposta do grupo, mas a mistura audiovisual dos seus projetos não se delimita. 

Na nova turnê, o pagodão baiano, o axé, o “soundsystem” emigrado da cultura jamaicana, continuaram intactos. Mas o trio de metais, composto por Sidmar Vieira (trompete), Mayara Almeida (sax tenor) e DougBone (trombone), impuseram uma atmosfera experimental. A luz, sempre emblemática, e a estética visual criada por Filipe Cartaxo, foi regurgitada pelos os artistas Core, da Bahia, e Fluxo Marginal, do Ceará. Todos esses elementos fizeram de “Água”, a primeira canção, a abertura de um ritual. A confluência entre os vocais mais pesados de Russo Passapusso – cantando cada vez melhor – e a sensibilidade poética de Claudia Manzo, alargaram o portal que o público foi convocado a passar. Mas é da guitarra baiana de Roberto Barreto – que deve estar ouvindo David Gilmour como nunca, como um amigo meu comentou durante os solos – que a alma do BaianaSystem navegou entre a ancestralidade, a modernidade, a referência e a novidade. Um exemplo? “Reza Forte/Sem Crise” foi buscar em “Check my machine”, do Paul McCartney, um ponto cardeal. Muito mais roqueira do que em qualquer outra versão gravada ou ao vivo, “Reza Forte/Sem Crise” foi um tipo de elevação à galáxia cultural que o grupo queria apresentar. 

Se o trombone e o sax reformularam músicas até então intocadas, como “Lucro”, um dos solos de Sidmar Vieira me transportou para dentro de “Mais e melhores Blues”, filme de Spike Lee, com Denzel Washington. O “experimentalismo” do grupo funcionou em marés diferentes.

Com a guitarra baiana de Roberto Barreto sendo o leme do grupo por esse mar de ritmos, o piano de Ubiratan Marques se tornou o vento: invisível, mortal, dono dos tornados e também da boa direção. Em 2023, ele lançou um ótimo álbum, “Dança do Tempo”. No palco com o BaianaSystem, mestre Ubiratan me parece um músico discreto. Isso até ele criar a tempestade. A performance em “Sulamericano” e a citação ao que pareceu ser “Vapor Barato”, de Jards Macalé e Waly Salomão, por exemplo, mostraram o poder do músico para “manipular” o tempo pelas suas teclas. Na profusão de “Sem crise” com “A vida é curta para viver depois”, do OXEAXEXU, Ubiratan sobressaiu com um som repetitivo, obcecado, tornando o experimentalismo da música mais sensual. SekoBass (baixo), João Meirelles (beats, synths e programações), Junix 11 e Ícaro Sá, à frente da percussão, foram as velas que deram velocidade à embarcação Navio Pirata.

A recente gravação que o Baiana fez de “Jack Soul Brasileiro”, do Lenine, teria feito um bem danado ao repertório. Na falta dela, “Saci” se destacou no convés. O trio de metais, juntamente com a performance dos sacis, explicitaram a ligação com o folclore brasileiro, regurgitado de “Além das Lendas Brasileiras” (1977), do grupo Terreno Baldio.

“Este álbum foi relançado e se conecta com ‘Nossa cultura em primeiro lugar’. Queremos dar continuidade a essa ideia, assim como ‘Cantata para Alagamar’ foi o disco que pesquisamos para formatar o Sulamericano Show,” contou Russo Passapusso ao Tenho Mais Discos que Amigos.

Agora, a disposição do grupo no palco também está descentralizada, fazendo um tipo de roda – ou gira – onde todos os membros se conectam diretamente com o público. O novo show tem vibe mais eletrônica, principalmente no que diz respeito a percussão. Se a sonoridade está mais “system”, isso não quer dizer que ela esteja menos “baiana”. Com a “cultura em primeiro lugar”, o BaianaSystem segue para a Europa ciente de que sua colonização tem outro significado.

1 comments
  1. Estive no show e adorei tudo neste “teste” da nova turnê! Mas algumas percepções descritas aqui no texto passaram completamente despercebidas por mim! Análise maravilhosa!

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