Aos 83 anos, Ney Matogrosso ainda tem muita ginga para dar e vender. Do dia em que apareceu de surpresa na Love Cabaret, a nova Love Story, na capital paulista, anunciando a ideia de fazer o maior show solo da carreira, até o dia 10 de agosto, data do espetáculo, se passaram 1000 anos. Isso porque a importância do artista, sua voz inimitável, e sobretudo a gramática corporal usada para escrever suas interpretações seguem em um fluxo distinto de tempo. Ney anda pelas abas e eras sem levantar outra bandeira que não seja a existência do aqui e agora. Ao abrir o show no Allianz Parque com “Eu quero é botar meu bloco na rua”, o cantor avisou ao público que o vigor, a energia e a paixão o impulsionam como há 50 anos. Mesmo quando disseram que ele já fugiu da briga, há décadas essa é a melhor forma de responder.
A banda afiadíssima não cedeu a friaca de 10 graus. “Jardins da Babilônia” é uma canção de Rita Lee, mas no repertório de Ney, a rebeldia da cantora paulistana ganha uma aura diferente que transita entre a malícia e a inocência, em uma convocação ao público para adentrar por uma civilização antiga, estranha e metamórfica.
Se nos becos escuros do Brasil a violência segue explodindo, Ney não precisou discursar sobre elas. Cantar o que vê e vive é seu jeito de dizer o que quer dizer sem “cantar em inglês”. O português, sua língua latina, corre nas veias mesmo quando os versos parecem estrangeiros, pois a dor é sócia do amor, não é?
“Pavão Mysterioso”, clássico de Ednardo e um dos mais veementes protestos contra a ditadura militar no Brasil, ganhou um arranjo poderoso, elevando a interpretação de Ney Matogrosso a um tipo de anúncio angelical. Só não é um dos mais emocionantes momentos do show porque a sequência de “A Maçã”, “Yolanda” e “Postal do Amor”, arranca de qualquer corpo as sensações mais controversas, os amores mais fortes, ódios e tédios que tornam qualquer sentimento uma afronta à razão. Com o estádio lotado, foi linda a forma como essa última canção, uma parceria entre Fagner e Fausto Nilo, impôs a crueza e a delícia da vida. Mesmo com essa turnê rodando o país há mais de três anos, Ney consegue fazer a trindade ser tão “tesuda”, sensual e corporal quanto um gemido pode ser. Ou não ser. Sei lá. Ney prefere ser os dois.
No show, o funk de “O último dia” andou sobre essa linha ambígua. Neste mundo onde tudo é efêmero, visualizável, e compartilhável, o “aqui agora” pode perder a importância. Mas Ney atirou sem pena: “se só te restasse um dia, você ia manter sua agenda de almoço, ou esperar seus amigos em uma sala vazia?”
A resposta dele veio com “Inominável”, “Sangue Latino” e “Como 2 e 2”, uma belíssima e singela interpretação que, se não fez lembrar Gal Costa em uma transversalidade musical, serviu para descarnar o mistério de como na vida nada é certo. A direção de arte criada por Batman Zavareze foi um destaque, ampliando o impacto do show. A imagem ressoava no som.
A beleza de “Poema”, cantada por 45 mil pessoas, transformou o estádio em uma constelação de fato. “Balada de louco” e “Roendo as unhas” serviram como a passagem de um raro cometa. Os pedidos para que “O vira” ou “Rosa de Hiroshima” fossem cantadas, contudo, foram deixados de lado. Talvez, pelo melhor motivo: “Pro dia nascer feliz”, de Cazuza, não é um encerramento, mas uma aurora, outra chance pra botar pra gemer em um espetáculo lendário, como Ney Matogrosso, um homem com H capaz de afastar tormentas, governos, frios e dores em uma mesma noite, foi e é. A música lhe dá identidade e também se identifica com esse artista poético sem deixar de ser político, claro. Porque sua voz, a exterminadora de rótulos, seguirá lembrando que eles são muitos, mas não podem voar.