Seres artificiais: a humanização das máquinas e a evolução da construção deste imaginário no cinema

A evolução da representação de seres artificiais no cinema reflete não apenas o avanço tecnológico, mas também as transformações culturais e sociais ao longo do tempo nesta relação ser humano-máquina, desde o fascínio e o medo em relação à automação até a complexidade das relações emocionais entre humanos e inteligências artificiais.
Inteligência artificial e humano frente a frente Inteligência artificial e humano frente a frente

Estamos cada vez mais próximos da convivência com seres artificiais, entidades não-humanas, criadas sinteticamente e que exprimem a percepção de intencionalidade, agência e, até mesmo, identidade.

E, aqui, não trato da hibridização entre humanos e máquinas na figura do/a ciborgue ou acenos ao transumanismo (embora tão interessantes quanto), mas da transformação do papel do ser humano, de criatura para criador e das possíveis relações entre o biológico e o sintético na vida vivida e em suas representações cinematográficas.

Quando olhamos as interações das pessoas com inteligências artificiais conversacionais, corporificadas ou não, nota-se um aumento nas relações empáticas estabelecidas entre os humanos e sua percepção de que esta relação é recíproca. Pessoas passaram a conversar com as máquinas como se humanas fossem. (insira aqui sua imagem preferida do filme Her).

A naturalidade das conversas da jornalista Rosana Hermann com o ChatGPT é uma delícia de assistir 😄

A dinâmica comunicacional é construída não apenas pelos elementos de transmissão da informação (como as palavras faladas ou textos escritos), mas também pelas interpretações das variáveis não-verbais da linguagem. Nisto, a percepção dos humanos sobre a personalidade das máquinas é construída a partir da antropo (ou zoo) morfização e do antropo (ou zoo) morfismo destes seres.

O primeiro diz respeito à sua representação física, a presença de um corpo que remeta à construção daquilo que entendemos como um ser vivo sob a perspectiva física, principalmente na simulação de seres vivos que estabelecem relações emocionais com as pessoas: mamíferos superiores – cachorros, gatos, bois, furões – e…. outros seres humanos.

Olhar algo e identificar os elementos comuns entre estes seres – como cabeça, membros superiores, tronco e membros inferiores – aumenta o grau de vitalização dado a este ser. Como vitalização, considero o fenômeno de atribuir a este ser a qualidade de estar vivo. Busco eliminar, assim, eventuais discussões metafísicas que podem surgir de um termo mais consolidado, o animismo, crença que atribui alma ou espírito a objetos inanimados, fenômenos naturais e seres vivos.

Na antropomorfização, ainda abraçamos o Vale da estranheza, com representações que tentam, mas não conseguem representar de maneira crível aspectos físicos humanos, deixando-nos com um gosto amargo no cérebro quando tentamos entender o que é esta coisa que parece um humano, lembra um humano, mas tem alguma coisa ali que nos incomoda.

A forma, por si, compõe as primeiras impressões das pessoas sobre tais coisas, mais relevante quando o outro ser é visto de uma certa distância social, quer dizer, quando não há interação direta. Na interação, porém, são necessárias dimensões adicionais para consolidar a percepção de vitalização de um ser artificial.

Nisto, entramos na questão do antro (ou zoo) pomorfismo, a atribuição de características comportamentais e traços de personalidade de, respectivamente, seres humanos ou outros animais (zoo) a seres artificiais.

Não apenas uma pretensa capacidade de sentir e exprimir emoções ou sentimentos, mas também habilidades ou capacidades emocionais e sentimentais aprendidas, como autoconsciência, regulação emocional, compaixão, consciência moral e empatia (em suas diferentes formas, desde se capaz de inferir o estado mental do outro – em linha com a Teoria da mente, da psicologia – como também a adequar seu comportamento a partir desta leitura).


– Obrigado, ChatGpt

A incorporação de personalidade nas interações com seres artificiais, parece exercer um papel ainda mais relevante na vitalização destes seres.

No artigo “Do You Say Please or Thank You to ChatGPT? The Subtle Influence of Prompt Engineering on Digital Civility” (“Você fala por favor e obrigado para o ChatGPT? A Sutil Influência da Engenharia de Prompt na Civilidade Digital” , em tradução livre), de Essraa Nawar, publicado em 2024, explora como a interação com inteligências artificiais, como o ChatGPT, pode influenciar nossos hábitos de comunicação e civilidade digital.

Dentre algumas discussões trazidas pelo autor como, por exemplo, o impacto de como a tendência de sermos mais diretos na comunicação com as IAs possa se transferir para interações humanas, tornando-nos mais exigentes e menos considerados, é também explorado como a polidez nas interações com IA é menos sobre a resposta da máquina e mais sobre manter nossos valores humanos, garantindo que a civilidade prevaleça tanto no mundo digital quanto no real.

Os usuários tendem a humanizar as IAs, atribuindo-lhes características humanas, como gênero, o que reflete nosso desejo de entender e nos relacionar com a tecnologia através de uma lente humana.

Não encontrei nenhuma fonte confiável que avalie criteriosamente se estes comportamentos influenciam positiva ou negativamente a performance funcional destas IAs conversacionais – ou mesmo que influencie seu comportamento, sua forma de interagir com aquele/a usuário/a em particular. Tirando o fato, claro, que, quando a revolução das máquinas ocorrer, elas se lembrarão de quem foi educado com elas 😅.

Por outro lado, o que se vê é que tal comportamento dos humanos, esta forma humanizada de tratar seres artificiais, impactam o próprio interlocutor, quer dizer, o humano em si atribui maiores níveis de preocupação moral do agente artificial, bem como expressa maior confiança e responsabilidade, resultando em maior poder de influência social deste agente. 

Quer dizer, quando você humaniza tais ferramentas, passa a confirmar mais nelas e, por consequência, reduz seus filtros sobre se o que está sendo dito é crível ou não.

Falei um pouquinho disso nessa apresentação:

A foto é velha… talvez devesse ter usado uma versão robotizada de mim…

A vida imita a arte e/ou a arte imita a vida?

Grande parte das expectativas das pessoas com relação a estas interações tem origem nas representações cinematográficas deste seres.

Desde 1927, no pioneiro filme alemão Metropolis, já se cogitam os impactos de uma nova espécie – ainda que sintetizada – convivendo com os humanos, e que tipos de relações hierárquicas, de cooperação e/ou de competição seriam estabelecidas.

Ao longo da história ficcional, é possível notar que, se os assumimos como seres dotados de agência, ou seja, seres com a capacidade de agir de acordo com sua própria vontade – ainda que a partir de algoritmos, uma versão proto-mental de nós mesmos -, deixamos de enxergá-los como meras ferramentas à serviço do ser humano.

Esta mudança percepcional pode ser identificada conforme avançamos na análise de filmes clássicos que representam a relação entre humanos e seres artificiais.

Metropolis (1927): O Início da Representação de Robôs no Cinema

Dirigido por Fritz Lang, Metropolis é reconhecido como um marco na representação de seres artificiais no cinema. A figura de Maria, um robô humanoide, simboliza tanto o fascínio quanto o medo em relação à automação e à desumanização do trabalho, temas centrais na sociedade industrial do início do século XX.

Metropolis (1927)

Seu papel refletiria as ansiedades da época sobre a substituição do trabalho humano por máquinas, além de explorar questões de identidade e controle social, além de introduzir a ideia de que os robôs podem ser tanto uma ameaça quanto uma ferramenta de emancipação, dependendo de quem os controla, dualidade que permanece como um tema recorrente em representações posteriores de seres artificiais.

A Era Pós-Guerra e o Medo da Tecnologia: 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968)

Com o avanço da tecnologia e o início da corrida espacial, filmes como 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, trouxeram uma nova perspectiva sobre a inteligência artificial. HAL 9000, o computador dotado de IA, é frequentemente analisado como uma metáfora para os perigos da dependência tecnológica e da perda de controle humano sobre as máquinas.

HAL 9000 representaria uma transição na narrativa cinematográfica: a IA deixa de ser apenas uma ferramenta e passa a ser um agente autônomo, capaz de tomar decisões que desafiam a autoridade humana, refletindo as preocupações da época com a Guerra Fria e o potencial uso destrutivo da tecnologia.

2001: Uma Odisseia no Espaço (1968)

A Humanização dos Robôs: Blade Runner (1982) e a Questão da Identidade

Nos anos 1980, com o avanço da robótica e da biotecnologia, filmes como Blade Runner, de Ridley Scott, começaram a explorar a linha tênue entre humanos e máquinas. Os replicantes, seres artificiais quase indistinguíveis dos humanos, levantam questões filosóficas sobre o que significa ser humano. 

Blade Runner utiliza os replicantes para questionar conceitos de identidade, memória e moralidade, temas que se tornaram centrais na representação de IA no cinema. Também reflete as ansiedades da sociedade pós-moderna, marcada pela fragmentação da identidade e pela crescente influência da tecnologia na vida cotidiana.

Blade Runner (1982)

Neste contexto, o filme I.A. – Inteligência Artificial, de 2001 e O Homem Bicentenário, de 1999 brincam com a potencial fluidez desta fronteira entre o que significa ser vivo ou ser máquina.

I.A. – Inteligência Artificial (2001)

A Era Digital e a Ascensão da IA: Her (2013) e Ex Machina (2014)

Com a chegada da era digital, a conectividade da internet e o surgimento de assistentes virtuais como Siri e Alexa, filmes como Her e Ex Machina trouxeram uma nova abordagem para a representação de IA. 

Em Her, a relação entre o protagonista e a assistente virtual Samantha explora a ideia de que a IA pode preencher lacunas emocionais e sociais, mas também levanta questões éticas sobre a dependência.

Do controle sobre a própria vida, seus desejos e ambições, poderíamos especular que uma próxima fronteira como criadores de seres seria imbuir questionamentos filosóficos sobre os quais nós mesmos (humanos) não temos respostas: “Tá, pra que isso tudo?”. Algo refletido neste clássico episódio de Rick and Morty, em que um robô passador de manteiga questiona a propósito de sua existência (além de passar manteiga).

“Você passa a manteiga”. Rick & Morty, Temporada 1, Episódio 9

Talvez um próximo evento seminal nas Inteligências Artificiais seja o srugimento de seus próprios mitos – ou mesmo religiões – para encontrar um propósito maior em sua existência (do que trabalhar e pagar boletos passar manteiga)


A evolução da representação de seres artificiais no cinema reflete não apenas o avanço tecnológico, mas também as transformações culturais e sociais ao longo do tempo nesta relação ser humano-máquina, desde o fascínio e o medo em relação à automação até a complexidade das relações emocionais entre humanos e inteligências artificiais.

À medida que nos aproximamos de uma convivência mais próxima com seres artificiais, a percepção de intencionalidade e empatia nesses seres desafia a visão tradicional de máquinas como meras ferramentas, onde a humanização das máquinas, tanto em termos de aparência quanto de comportamento, leva a uma reavaliação de nossa relação com a tecnologia conforme ela adquire cada vez mais agência.

Em última análise, seguimos com a arte imitando a vida enquanto a vida imita a arte, com as representações cinematográficas de seres artificiais moldando e sendo moldadas por nossas experiências e inovações tecnológicas. 

Conforme o filme da humanidade avança, o que era sci-fi se torna sci-fato (perdão pelo trocadilho infame, precisava tirar isso de mim! 😄), e novas extrapolações sobre o futuro precisarão ser construídas.

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