Eu adoro um dos vídeos postados no perfil do Milton Nascimento no Instagram. Ele está dentro do carro. Augustin, seu filho, quer saber o que eles vão ouvir. E Milton lança: “Beatles”.
“Para Lennon e McCartney” surge em A Última Sessão de Música, a turnê de despedida dos palcos do artista, depois de alguns hinos. No início do show, os “Tambores de Minas”, incidentais e poderosos, se misturam ao apito do trem. O Sérgio Santana tem um conto genial onde escreveu: “Curioso esse apelido tirado do nome do Antônio Carlos Jobim: Tom. Consequência da música ou, desde o princípio, uma predestinação? Do mesmo modo que as iniciais dos nomes do Milton Nascimento: Minas. É isso”.
“O mais mineiro dos cariocas” então canta “ponta de areia, ponto final” e lembra o público de aproveitar a viagem em vez de chorar pelo destino final.
“Cais”, logo em seguida, deixa a tarefa ingrata. Uma das mais belas canções da nossa música é, pra mim, uma espécie de manifesto de resistência à passagem da vida. Inventar um cais, saber a hora de se lançar às tempestades é uma estranha mania de inventar o mar. Quem inventa em si um sonhador consegue partir de qualquer lugar.
Milton é um artista anti-tempo: não vive nem lá, nem cá; está em todos os lugares, permanentemente, com um tipo de presença muito acima do entendimento pacato de que a vida passa. A vida de Milton não. A vida dele sobrevoa.
“Tudo o que você podia ser” e “Cravo e canela” são lançados ao mar do Espaço Unimed, em São Paulo, com muita beleza. Em “San Vicente”, Milton recua sua fragata e deixa as águas livres para Zé Ibarra, o anjo da guarda que o acompanha desde a turnê Clube da Esquina.
O entrosamento entre os dois foi decantado ao longo desses anos e rende momentos emocionantes. É só ver como “Clube da esquina 2”, a canção em sequência, ganha sóis, cores, e teleporta o público para sua primeira gravação, lá em 1972.
Milton fala pouco durante o show. “Vamos tocar Lília, uma canção feita para minha mãe. Não tem letra. Nada poderia definí-la”.
O instrumental é lindamente executado. A banda incrível que acompanha Milton Nascimento bota a música dele dentro do nosso ouvido com uma naturalidade tão grande… é como se as canções de Milton fossem um órgão do nosso sistema auditivo. Esse “órgão” sempre esteve ali, esperando para ser usado naquele momento.
O público toma fôlego para perdê-lo dois minutos depois, quando Milton chama uma amiga ao palco. Simone é a parceira em “Nada será como antes”.
Amizade. Palavra de múltiplos significados, mas nenhum tão poético quanto em “Canção da América”. Outra das músicas de Milton que transcenderam o campo musical e atingiram um status de glória, de signo, de símbolo de era.
A música fala por si. Mas a cenografia, criada pelos Os Gêmeos, e a iluminação, deram um gosto de sol ao espetáculo. Quando “Nos bailes da vida” é executada, a luz amarelada explode como fogos de artifício no réveillon. É lindo como essa coreografia sensorial acontece.
“Maria, Maria” também divide o panteão de “Canção da América” e “Nos Bailes da Vida”. É com ela que Milton encerra o show de um jeito definitivo e, ao mesmo tempo, impossível de aceitar.
O bis precisa subir ao vagão do trem.
“Quero falar de uma coisa…” é um verso que vale um show inteiro. É com “Coração de Estudante” que Milton não só retorna ao palco, como manda uma mensagem contundente: “Viva a democracia!”
Simone chega mais para interpretar uma das minhas canções favoritas: “Encontros e Despedidas”. A confluência entre as vozes gera uma interpretação catártica e dolorosa porque a hora do encontro é também despedida. E “Travessia” é o apito que anuncia o fim da viagem. Milton vai embora e fará noite em nosso viver.
Mas assistir A Última Sessão de Música é, na verdade, ver um amanhecer. Milton foi o sol que durante 60 anos iluminou a travessia de um país por sua história.
Dessa estação, desse clube de esquina, desse cais e desse palco, artistas como Milton Nascimento não se despedem jamais.