Milton Nascimento em São Paulo

Com a turnê “A última sessão de música”, Milton mostra que não há despedida para um dos maiores gênios criativos do Brasil.
Milton Nascimento em São Paulo Milton Nascimento em São Paulo
Milton Nascimento faz show no Espaço Unimed

Eu adoro um dos vídeos postados no perfil do Milton Nascimento no Instagram. Ele está dentro do carro. Augustin, seu filho, quer saber o que eles vão ouvir. E Milton lança: “Beatles”. 

“Para Lennon e McCartney” surge em A Última Sessão de Música, a turnê de despedida dos palcos do artista, depois de alguns hinos. No início do show, os “Tambores de Minas”, incidentais e poderosos, se misturam ao apito do trem. O Sérgio Santana tem um conto genial onde escreveu: “Curioso esse apelido tirado do nome do Antônio Carlos Jobim: Tom. Consequência da música ou, desde o princípio, uma predestinação? Do mesmo modo que as iniciais dos nomes do Milton Nascimento: Minas. É isso”.

“O mais mineiro dos cariocas” então canta “ponta de areia, ponto final” e lembra o público de aproveitar a viagem em vez de chorar pelo destino final. 

Milton Nascimento em São Paulo
Milton Nascimento faz show no Espaço Unimed

“Cais”, logo em seguida, deixa a tarefa ingrata. Uma das mais belas canções da nossa música é, pra mim, uma espécie de manifesto de resistência à passagem da vida. Inventar um cais, saber a hora de se lançar às tempestades é uma estranha mania de inventar o mar. Quem inventa em si um sonhador consegue partir de qualquer lugar. 

Milton é um artista anti-tempo: não vive nem lá, nem cá; está em todos os lugares, permanentemente, com um tipo de presença muito acima do entendimento pacato de que a vida passa. A vida de Milton não. A vida dele sobrevoa. 

Milton Nascimento em São Paulo
Milton Nascimento faz show no Espaço Unimed

“Tudo o que você podia ser” e  “Cravo e canela” são lançados ao mar do Espaço Unimed, em São Paulo, com muita beleza. Em “San Vicente”, Milton recua sua fragata e deixa as águas livres para Zé Ibarra, o anjo da guarda que o acompanha desde a turnê Clube da Esquina. 

O entrosamento entre os dois foi decantado ao longo desses anos e rende momentos emocionantes. É só ver como “Clube da esquina 2”, a canção em sequência, ganha sóis, cores, e teleporta o público para sua primeira gravação, lá em 1972. 

Milton fala pouco durante o show. “Vamos tocar Lília, uma canção feita para minha mãe. Não tem letra. Nada poderia definí-la”. 

O instrumental é lindamente executado. A banda incrível que acompanha Milton Nascimento bota a música dele dentro do nosso ouvido com uma naturalidade tão grande… é como se as canções de Milton fossem um órgão do nosso sistema auditivo. Esse “órgão” sempre esteve ali, esperando para ser usado naquele momento. 

Milton Nascimento em São Paulo
Milton e banda

O público toma fôlego para perdê-lo dois minutos depois, quando Milton chama uma amiga ao palco. Simone é a parceira em “Nada será como antes”. 

Amizade. Palavra de múltiplos significados, mas nenhum tão poético quanto em “Canção da América”. Outra das músicas de Milton que transcenderam o campo musical e atingiram um status de glória, de signo, de símbolo de era. 

A música fala por si. Mas a cenografia, criada pelos Os Gêmeos, e a iluminação, deram um gosto de sol ao espetáculo. Quando “Nos bailes da vida” é executada, a luz amarelada explode como fogos de artifício no réveillon. É lindo como essa coreografia sensorial acontece. 

Milton Nascimento em São Paulo

“Maria, Maria” também divide o panteão de “Canção da América” e “Nos Bailes da Vida”. É com ela que Milton encerra o show de um jeito definitivo e, ao mesmo tempo, impossível de aceitar. 

O bis precisa subir ao vagão do trem. 

“Quero falar de uma coisa…” é um verso que vale um show inteiro. É com “Coração de Estudante” que Milton não só retorna ao palco, como manda uma mensagem contundente:  “Viva a democracia!”

Simone chega mais para interpretar uma das minhas canções favoritas: “Encontros e Despedidas”. A confluência entre as vozes gera uma interpretação catártica e dolorosa porque a hora do encontro é também despedida. E “Travessia” é o apito que anuncia o fim da viagem. Milton vai embora e fará noite em nosso viver. 

Mas assistir A Última Sessão de Música é, na verdade, ver um amanhecer. Milton foi o sol que durante 60 anos iluminou a travessia de um país por sua história. 

Dessa estação, desse clube de esquina, desse cais e desse palco, artistas como Milton Nascimento não se despedem jamais.  

Add a comment

Deixe um comentário