“O tipo de beleza mais nobre é aquele que não arrebata de repente, e que não faz ataques impetuosos e inebriantes (esse provoca com facilidade o tédio), mas que se insinua lentamente, que se carrega consigo quase sem saber e que um dia, em sonho, se redescobre, mas que, por fim, após ter ficado modestamente em nosso coração, toma posse completa de nós, enche nossos olhos de lágrimas, nosso coração de desejo.”
– Nietzsche
[spacer height=”30px”]
Extraterrestres são seres sempre retratados como superinteligentes e, em alguns casos, dependendo da teoria, quase que desprovidos da necessidade de estarem conectados à nossa realidade imediata, como se fossem “seres espirituais”. Prato cheio para o cinema e inúmeros best-sellers. Da nossa perspectiva platônica, na maioria das vezes, preferimos imagina-los muito acima da média, numa esfera próxima do divino. Ao que parece, nada muito diferente de muitas culturas ao longo da existência humana. Afinal, a história da arte está aí para provar que muito esforço se empreendeu para desenhar horizontes que, teoricamente, nunca deveriam ser tocados, apenas deixados lá para nossa veneração e mórbida curiosidade.
Não se aceita defeitos na hora de criar ídolos. Desde os heróis rupestres, passando pelos belíssimos óleos em tela vitorianos, até as capas coloridas em couché cobertas de verniz localizado e smartphones. Não se conta a história daquilo que alega-se ser vergonhoso. Uma tórrida caçada pelas savanas da antiga Pangeia, uma pose após a conquista dos exércitos do oriente ou a foto de uma celebridade que acabou de se casar ou, em muitos casos, terminou seu casamento, são eventos que retratam atos atribuídos a seres “extraordinários”, ou seja, que vivem ou orbitam uma realidade para além daquela que a grande maioria, difícil e supostamente, conseguiria alcançar.
Criamos deuses para nos justificar a própria existência. Criamos símbolos para que tenhamos motivos e aspiração para gerar sonhos. Enfim, criamos; e somos vítimas disso.
Como a criação precisa religar-se, de algum modo, ao seu criador, com o poder da tecnologia, hoje, todos, quase que sem exceção, podemos nos aproximar da divindade. Não precisamos ser o chefe da tribo, um general francês ou até mesmo um ator famoso. Já é “real” a hiper-realidade. Cada um de nós pode editar a sua própria versão ideal de existência. É possível dizer para as pessoas que não temos esse ou aquele defeito no rosto ou nas pernas ou então criar cortes de cabelo, cintura, bíceps, tríceps e tanquinhos para todos os gostos. Somos deuses. Temos o poder de sermos o que der na telha, somos capazes de estar em qualquer lugar; somos o próprio infinito. Só não somos capazes de assumir que temos algum defeito. O erro, de alguma forma, nos confina ao esquecimento, nos tira os louros e o trono, acaba nos lançando Olimpo abaixo. O defeito nos defenestra, vergonhosamente; com cerimônia e ritual de passagem; só de ida.
É sufocante a ideia de não editar a nossa própria imagem antes de expô-la ao mundo. É mortificante saber que a ruga, a cicatriz, as varizes, a olheira e tantas outras naturais marcas do tempo, que acometem a todos os mortais, estarão à disposição de olhos alheios, de mentes que ruminarão supostas opiniões negativas sobre a nossa conexão com o divino. Eram os deuses astronautas? Bom, não sei. A grande questão é que o democrático poder de nos fantasiar de entidades iluminadas pode anular, ironicamente, a nossa capacidade de perceber a nós mesmos.
É caro existir nos dias de hoje. É dispendioso sair de casa ao encontro das pessoas. Até a nossa versão digital, a que fomenta tantos olhares indulgentes e nos santifica ao inimaginável nível da aceitação social, está carregada de retoques e rebuscada de detalhes para que nossos seguidores não percam a fé; e a vontade de curtir. Ser original é blasfêmia. Às vezes, o simples fato de ser já é tão exigente que o atalho de uma faceta, um avatar, uma máscara, uma parede digital ou um discurso vazio (mas cheio de propaganda pessoal) parecem ser mais confortáveis e, certamente, mais seguros.
O espelho nunca mente e a nossa consciência, mesmo que poluída de disfarces e artimanhas, não consegue ludibriar a fonte de suas fantasias. O travesseiro é o calabouço da realidade; o teto do quarto, às vezes, o divã de noites insones. A verdade é que não fomos educados para a autenticidade. A carne crua, sem tempero, não agrada muito. Mas, até quando vamos nos iludir? Até quando seremos escravos de uma amarga necessidade de viver uma vida paralela, difusa e sem um eixo central?
Na minha humilde opinião, a grandeza do ser humano está ali, no cantinho de sua camada mais profunda, no avesso de seu orgulho, nas abas mais enviesadas de suas dúvidas sobre aquilo que se pode realizar na vida. Enfim, que sejam obesos os nossos sonhos e que nunca nos falte a genuína fome por existir. Pois, o mesmo mundo que insiste em venerar carinhas bonitas só respeita quem é, suficientemente, corajoso para ser autêntico, com ou sem maquiagem, seja de pele lisa ou barriguinha de cerveja, seja de scarpin ou de rasteirinha.
O que nos torna esquisitos (confira o significado disso) não é o que pensam de nós, mas é o que as pessoas nos veem fazendo. E, para isso, não é necessário nenhum tipo de edição ou retoque, basta um tipo único de criatividade: paixão pelo que é diverso. A verdade é dura mas resolve o problema, pois acredito que não precisamos de paliativos para ver, sentir e fruir a vida em todas as suas possibilidades.
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.
saca esse texto, Fabricio Cavalcante