O fato da tecnologia estar mudando como nos relacionamos, compramos e nos locomovemos é facilmente percebido. Para muitos, é impensável viver sem a tecnologia para realizar tarefas do dia a dia, e isso faz com que seja cada vez mais natural a adaptação à elas e aos padrões de comportamento que nos sujeitamos para utliza-las. E, por conta disso, estamos passando por uma mudança que não é facilmente percebida, mas tem um impacto gigantesco em uma estrutura que perpetua desde a Grécia antiga: como consumimos narrativas.
Para Aristóteles, o teatro tinha a capacidade de purificar a alma dos espectadores através das resoluções dos conflitos representados. Esse fenômeno é conhecido como Catarse, e é o que movia grandes platéias a ambientes absolutamente desconfortáveis para acompanhar horas de tragédias gregas, fazia com que pessoas vestissem suas melhores roupas na época de ouro do cinema e fazia a família inteira ficar atenta na TV (inclusive nos intervalos comerciais) para não perder a única oportunidade de ver o novo episódio do programa. Não há dúvidas que esse comportamento, de tornar o consumo de entretenimento um evento, mudou drasticamente. Em seu artigo, Beginning, Middle, End of an Era: Has Technology Trumped Aristotle?, Richard Allen diz, “ser parte da audiência não é mais um estado temporário. Ao invés disso, o momento entre assistir algo se tornou meras pausas que ocorrem na eterna experiência de assistir.”. Ou seja, com a quantidade de opções que temos, o consumo de conteúdo se tornou quase constante e, com isso, o engajamento com o entretenimento na era digital é um comportamento psicológico absolutamente novo.
A mudança
O mercado de games, já consolidado, tem um crescimento exponencial no mundo todo. Em 2018, a industria de vídeo games faturou mais que o dobro da cinematográfica e fonográfica juntas, sendo, respectivamente, US$ 134.9 bilhões, US$ 41.6 bilhões e US$ 19.1 bilhões. Os números são impressionantes. Já as mídias sociais tem se tornado um meio extremamente influente na construção social e cultural do mundo. Há dez anos era impossível prever que o Facebook poderia definir eleições, mas é a realidade que estamos vivendo.
O impacto dos games e mídias sociais é, além de mercadológico e político, comportamental. Isso por que as histórias nas novas mídias funcionam baseadas em um grande meio, em um estado eterno de desenvolvimento. Os games cada vez mais trabalham o conceito de uma jornada sem fim pelo meio, fazendo que não vejamos sentido em chegar ao final. Claro, existem jogos com uma linha cronológica bem estabelecida, mas, mesmo neles, existem inúmeras side quests. No caso das mídias sociais, temos o feed infinito, que nos motiva a navegar nele por horas sem nos dar conta do tempo que passou. Jay David Bolter diz que as novas mídias “oferecem ao espectador, jogador ou participante não só o prazer no momento, mas também a sedutora possibilidade do momento continuar por tempo indeterminado”. Ou seja, hoje não temos anseio pela conclusão do entretenimento, preferimos o flow de nos entreter constantemente.
Mas o que isso tem a ver com as narrativas?
Bom, na verdade, tudo. Para exemplificar o impacto desse fenômeno, vou comparar os finais de Game of Thrones e da saga Vingadores. A série da HBO não teve uma boa avaliação do público com seu fechamento, mesmo sendo aclamada nas outras temporadas, principalmente nas cinco primeiras. O oposto aconteceu com Vingadores: Ultimato, que conquistou, além da maior bilheteria de todos os tempos, o coração dos fãs.
Podemos dizer, levando as mudanças comportamentais já levantadas, que ao apresentar novos conflitos políticos, personagens e criaturas místicas durante cinco temporadas, Game of Thrones satisfez (e muito!) seus fãs apenas com a construção narrativa. Seria possível, sendo assim, criar um final que entregasse uma conclusão para o meio estendido tão boa que fizesse com que os fãs desejassem o fechamento do arco narrativo?
Não é o que o histórico mostra. As séries com episódios mais independentes, como The Office, são as que possuem os finais mais bem avaliados no IMDb, enquanto séries que a narrativa depende da ordem cronológica dos episódios, como Game of Thrones, tem as piores avaliações nas temporadas finais.
Com isso, vamos falar de Vingadores. Desde 2008 a Marvel tem trabalhado o seu universo cinematográfico, lançando 21 filmes até o desfecho da Saga do Infinito em Vingadores: Ultimato. Esse formato, se comparado ao cenário das séries, fez sucesso por trabalhar episódios independentes, os quais nos apresentam e concluem novas tramas e personagens, que nos levam à grande conclusão: (Alerta de Spoiler) a morte de Thanos.
Seja por conta dos vídeo games, mídias sociais e outras tecnologias, os feedbacks de filmes e séries mostram que é preciso saber conduzir a narrativa muito bem para não causar o anseio pela “sedutora possibilidade do momento continuar por tempo indeterminado”. Podemos concluir, portanto, que a mudança de como consumimos narrativas impactou diretamente na diferença em como os fãs receberam os finais de Game of Thrones e Vingadores. Essa mudança, inclusive, pode impactar outras grandes produções, como a saga Star Wars, que vem passando por uma crise desde que a Disney adquiriu os direitos da franquia. Saber lidar com essa nova narrativa, por outro lado, pode ser uma nova esperança para Star Wars, como foi para o universo cinematográfico da Marvel.
Muito boa análise!