Entenda como essa tendência do mercado de alimentação demorou para chegar por aqui e porque ela é inevitável
Os últimos anos foram marcados por infinitas discussões sobre alimentação. Como ela deveria ser, como os ultraprocessados foram desmascarados em praça pública, como comer passou a ser um ato político e como moldar o nosso consumo pode causar grandes impactos em toda a cadeia.
No meio de todo esse bololô, o farm-to-table ganhou holofotes quando se trata desse mercado. Mas se você desconhece esse termo, vou fazer aqui um recap importante do conceito.
Farm-to-table for all
Como o próprio nome diz, farm-to-table é uma espécie de ecossistema de consumo onde a cadeia é encurtada com o objetivo do consumidor final estar mais próximo do produtor.
A forma mais comum hoje em dia, são eventos feitos no meio das plantações, onde você vai até um produtor de tomate para aprender tudo sobre a fruta e no final experimentar diversas receitas feitas com produtos super frescos. Outra forma é você frequentar restaurantes que funcionam sob a lógica do farm-to-table, que serve apenas produtos muito frescos de agricultores locais. Mas o conceito não é nada novo, muito pelo contrário.
Contexto
No início do século XX, a medida que a Indústria invadia as cidades, o êxodo rural começou a fazer parte da vida daquelas famílias e a mão de obra do campo, sobretudo da agriculta familiar, migrou para o chão de fábrica das grandes cidades.
Já no final da década de 60, em plena contracultura hippie, muita gente começou a defender um estilo de vida mais simples e voltar para o campo para plantar o que consumia e, nesse contexto, a agricultura familiar voltou a fazer parte da vida das pessoas.
Em 1971, Alice Waters, uma importante chef de cozinha da cidade de Berkeley, Califórnia, abriu o que, até então, se entende como o primeiro restaurante farm-to-table do mundo, o Chez Panisse. A ideia de Alice era ir contra toda aquela onda massiva de processados e enlatados que enchiam as prateleiras dos supermercados americanos. O Chez Panisse foi um sucesso e ajudou a fomentar essa discussão em toda Califórnia, que criou o seu primeiro selo de alimento orgânico em 1973.
Esse aumento da demanda por produtos locais acessíveis resultou em um crescimento de 370% no número de mercados de agricultores nos EUA - sem mencionar a prevalência de mercados naturais e orgânicos, como a Whole Foods. Pesquisa do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos com análise feita entre 2007 e 2012.
Os fundamentos básicos do farm-to-table
Comida segura: o farm-to-table aumenta a segurança alimentar, indo além das necessidades de indivíduos e olhando para as necessidades da comunidade em geral, com foco em famílias de baixa renda com agricultura familiar.
Proximidade: o movimento farm-to-table depende da noção de que os vários componentes de um sistema alimentar devem estar o mais próximo possível um do outro. O objetivo é desenvolver relacionamentos entre as várias partes interessadas em um sistema alimentar, como agricultores, processadores, varejistas, donos de restaurantes, consumidores e muito mais. Além disso, a proximidade reduz o impacto ambiental do transporte de ingredientes entre estados ou países.
Autoconfiança: um dos maiores objetivos do farm-to-table é fomentar comunidades que possam atender às suas próprias necessidades alimentares, novamente eliminando a necessidade de recursos externos ou transporte de alimentos a longa distância. É um processo independente.
Sustentabilidade. a idéia principal aqui é que os sistemas agrícolas de farm-to-table existam de uma maneira que não sufoque a capacidade das gerações futuras de atender às suas necessidades alimentares, o que significa que não destrói recursos no processo.
Existem outros dois pontos importantes dentro dessa discussão: o de respeitar o tempo de cada alimento (não tem tomate o ano todo e quando não for tempo de colheita não vamos ter receitas com ele) e o de empoderar o agricultor local.
Farm to table influencia a forma de como as pessoas cozinham em casa, é uma espécie de conscientização de consumo e lifestyle.
O farm-to-table 1.0 e o 2.0
O conceito evoluiu da ideia inicial de comida fresca para uma espécie de adaptação geral da vida humana perante à natureza, então se pudermos definir os estágios desse movimento seria:
Farm-to-table 1.0: o chef percebia a disponibilidade da matéria-prima que gostaria de usar e montava um menu sazonal.
Farm-to-table 2.0: os cozinheiros começaram a conceber suas criações a partir de plantações específicas. O planejamento de cardápio surge com antecedência maior, porém, com uma garantia de frescor ímpar.
Dessa forma todos saem ganhando: o meio ambiente, o produtor, o chef e os consumidores.
Como a crise econômica potencializa o conceito farm-to-table no mundo
Temos dois pontos interligados que fazem com que essa ideia de consumir produtos frescos através de uma experiência ganhe voz e vez: o aumento da taxa de desemprego entre a faixa mais jovem e a volta dos mesmos para a casa dos pais, a chamada geração cegonha.
Países como a Espanha, onde o desemprego chegou a 46% entre jovens de 17-29 anos em 2016, fizeram com que boa parte dessas pessoas retornassem para a casa de seus pais. Sabemos que a crise econômica tomou diversos países da Europa e da América e, quando esses jovens voltaram para a casa dos pais – aqueles famosos seres da geração X > super trabalhadora e conservadora – precisaram se reinventar e enxergaram os negócios familiares como uma oportunidade de fazer com que suas ideias acontecessem.
Quando esses jovens são filhos de agricultores com pequenas plantações ou criações de animais aí sim temos os terrenos mais férteis e criativos para o farm-to-table.
De acordo com um censo do Departamento de Agricultura, o número de americanos com menos de 35 anos que administram fazendas aumentou 10% entre 2007 e 2012.
Departamento de Agricultura
A experiência e o consumo do farm-to-table
Quando mudo o tabuleiro de lado e penso quais são os estímulos e os anseios de quem consome esse tipo de experiência consigo enxergar uma colcha de retalhos de microtendências e sinais de comportamento que ajudam o farm-to-table ganhar força, principalmente com os millenials.
Isso porque os millenials é a geração onde os drivers de consumo sempre passam pela experiência. Para você ter ideia, segundo a pesquisa do Business Comunity, 78% dos millennials preferem gastar dinheiro em uma experiência ou evento do que comprar algo desejável. Juntando esse dado ao consumo de alimentação e bebida, a pesquisa do Foodspark aponta de 53% dos millennials classificaram uma nova experiência como uma característica importante ao escolher um lugar para comer.
73% dos millennials globais estão dispostos a pagar mais por bens sustentáveis.
Nielsen
Farm-to-table é instagramável
Outro fator de sucesso é a mesa instagramável que os eventos proporcionam, parece uma visão simplista, mas o compartilhamento é algo fundamental para os frequentadores desses eventos, pela questão da estética e da narrativa intrínseca naquelas fotos e vídeos.
Três em cada quatro millennials dizem que compartilhar alimentos entre amigos, familiares ou colegas de trabalho é uma ótima maneira de socializar
Pesquisa do The Helo Group.
As principais tendências de consumo que propiciam um cenário perfeito para o advento do farm-to-table
Real food
Um dos termos mais usados em 2019 foi o “comida de verdade”. Vimos um aumento significativo de influenciadores e trend setters com esse discurso na ponta da língua, mas ele não é tão simples quanto a sua tradução sugere. Há um aumento exponencial por entender de onde vem aquele alimento antes de consumi-lo, isso se deve ao fato do interesse que as pessoas possuem em ter uma alimentação mais saudável ou a melhor possível dentro de sua rotina.
O sabor é outro ponto fundamental dentro dessa tendência. As pessoas estão interessadas em admirar o detalhe que cada ingrediente desperta e pretende inseri-lo em suas receitas diárias. Nesse quesito, os reality shows e demais programas de alimentação fomentaram esse mercado, pois as pessoas passaram a entender com mais clareza a função de ervas como tomilho, manjericão, cúrcuma e outras.
O “cliente eco” é outro fator determinante dentro dessa tendência. Aqui englobamos vegetaríamos, veganos e os recentes flexitarianos , que são pessoas que tem um pensamento mais ecológico na hora de consumir. Esse consumidor não é exatamente vegetariano, mas ele já consome menos quantidade de carne que antes, por exemplo.
Newstalgia
Essa tendência que molda mais facilmente produtos ligados à moda e ao design, também dá suas caras na cadeia de consumo de alimentos e bebidas. A newstalgia – tendência que já falei nesse post sobre cultura pop aqui – é uma forma de olhar para o passado e criar uma narrativa contemporânea em cima dele.
Diferente da nostalgia – que era a ideia de viver o passado em sua forma original – aqui, o produto e/ou a experiência precisa fazer sentido nos dias de hoje. antes, convidar um jovem p ir numa fazenda e ter aula s plantação de abobora, a chance de ter sucesso seria baixa, já nos dias de hoje, com a necessidade de conexão com nossas raízes e com a natureza de forma geral, portanto, a newstalgia é uma tendência de consumo mapeada dentro do farm-to-table.
Um exemplo claro disso são as disputadas rotas com o chef Oliver Ridgeway, do restaurante Grande, na Califórnia. Toda quarta-feira Oliver faz um passeio com convidados – que pagam, obviamente – onde ele faz as suas compras com produtores locais, manuseia os produtos e depois prepara alguns pratos para esses acompanhantes. Se analisarmos, esse passeio nada mais é que uma forma hypada de ir à feira com sua nonna no sábado de manhã e depois vê-la preparando aquela polenta incrível.
Encontro de culturas
Essa é uma tendência nem tão nova por aqui, mas de fato é algo que ajuda o farm-to-table a ganhar força, afinal a gastronomia é o terceiro maior drive de compra de viagens no mundo, segundo o Informa Mundial de Turismo Gastronômico.
O encontro de culturas vem dessa necessidade de intercâmbio étnico, por exemplo: se antes viajávamos para Lima para comer no Central (restaurante estrelado da capital peruana), hoje ansiamos ir para o interior do Peru e aprender tudo sobre comida local com uma dona de casa. A necessidade de conhecer outra cultura para aumentar a sua taxa de civilidade é o grande ponto dessa tendência e isso vai totalmente de encontro com o farm-to-table.
Sites como o Visit California ou até mesmo o AirBnb aumentaram suas ofertas de experiências gastronômicas em zonas rurais.
Como podemos tropicalizar o farm-to-table?
A logística entre produtores e cliente final devido a extensão territorial do Brasil é um grande obstáculo que ainda atravanca o processo. A burocracia nas políticas comercias e, obviamente, o lobby dos grandes agricultores são outros fatores que também dificultam a expansão dessa ideia no país.
É claro que quando falo de farm-to-table no Brasil, estou fazendo um recorte privilegiado, como o aumento de restaurantes e bares em São Paulo, como o Empório Local, situado no bairro de Pinheiros.
Outras iniciativas começam a aparecer por aqui também, como as urban farming Lano Alto e a Urban Farmcy que abraçaram a ideia do slow food e vendem seus produtos através de loja virtual, eventos in-loco e parcerias com lojas locais.
O mais interessante do farm-to-table é que ele possibilita uma outra forma de pensar e exercer o negócio da agricultura familiar, o que em tempos de escândalos e boicotes às famosas bancadas ruralistas e latifundiárias faz todo o sentido. Precisamos comer melhor e entendemos que comer também é um ato político.
Que texto bom!
assino embaixo =D
Tiago, adorei o artigo. Em um mundo altamente descartável, acredito que a busca pelo simples, pelo espiritual e pelo natural será mais constante. Tenho clientes que praticam o KM0 em suas atividades, aliviando os custos de logística e desgate no meio-ambiente. Isso significa que dá sempre para rever hábitos e reviver muitas coisas.