O que “O último homem americano” Eustace Conway, o brasileiro Gabriel Buchmann e o músico francês Flo Delavega possuem em comum?
Jack Kerouac, o autor conhecido por ser um dos ícones do movimento beat, em meados dos anos 50, reverbera até hoje na cultura ocidental. Consagrado pela obra “On The Road: Na Estrada”, Keroauc narrou e difundiu suas experiências libertárias e marginais as quais defendia como um dos mais sólidos caminhos para encontrar uma sublime e verdadeira liberdade.
“Nenhum homem deveria passar pela vida sem experimentar pelo menos uma vez a saudável e até aborrecida solidão em um lugar selvagem, dependendo exclusivamente de si mesmo e, com isso, aprendendo a descobrir sua verdadeira força oculta. Aprendendo, por exemplo, a comer quando tem fome e a dormir quando tem sono.” — Jack Kerouac, “O Viajante Solitário”
É praticamente impossível não chegar ao final de alguma de suas obras sentindo-se indiferente. Seja inspirando ou incomodando (não espere linearidade na maioria das obras), é certo que o escritor deixou sua marca na cultura ocidental e impactou milhares de vidas. Onde encontrar essa essência beat nos dias hoje?
Um livro: “O último homem americano” de Elizabeth Gilbert
Popular pelo livro Comer, Rezar e Amar, a escritora Elizabeth Gilbert é a responsável pela biografia de Eustace Conway, um naturalista que buscava viver como eremita desde os 17 anos. Com o tempo, Conway (hoje com 60 anos) também dedicou-se a disseminar essa filosofia “de viver ao natural” com diversos projetos em sua reserva — que existe até hoje.
Para escrever “O último homem americano”, lançado em 2002, Gilbert passou um tempo com esse homem de visão que diverge de tudo que é amplificado na cultura norte-americana, sedenta por consumo, fama e poder. Claro que as contradições desse carismático personagem surgem volta e meia, mas nada que ofusque em narrativa focada em desvendar a sua obstinada — e diversas vezes, triste — guerra solitária de fazer a sociedade enxergar que nada mais é necessário além de viver em meio à natureza.
“Eu não vivo dentro de edifícios porque os edifícios são mortos onde nada cresce, onde a água não flui e onde a vida para. Eu não quero viver em um lugar morto. As pessoas dizem que eu não moro em um mundo real, mas são os modernos americanos que vivem em um mundo falso, porque eles saíram do círculo natural da vida”. — Eustace Conway, “O último Homem Americano”
Um filme: “Gabriel e a montanha” de Fellipe Barbosa
Teria Gabriel Buchmann conhecido e apreciado a história do icônico Christopher McCandless (seguidor dos escritores Jack Kerouak e Jack London) a qual a história foi esmiuçada no livro e filme Na Natureza Selvagem? Ambas jornadas terminaram trágicas, porém, as motivações da imersão de Gabriel por países africanos, que culminaram em sua morte, não são nem de perto “radicais” como as do jovem norte-americano que foi encontrado dentro de um ônibus abandonado no Parque Nacional Denali no Alasca, enquanto buscava viver livre e isolado da humanidade.
No filme de Fellipe Barbosa, que era seu amigo, Buchmann é apresentado como um estrangeiro que rejeita o título de turista, evitando até rotas para estes. O jovem partiu em 2009 por uma aventura em países europeus, asiáticos e africanos, sendo encontrado morto, após 19 dias desaparecido, no Monte Mulanje, no Malaui. O carismático Gabriel, aqui interpretado por João Pedro Zappa, em seus últimos dias fez uma imersão em comunidades de países como Quênia, Zâmbia, Tanzânia, além do seu destino final.
Barbosa recria os últimos 70 dias do jovem economista que se preparava para cursar um mestrado sobre políticas públicas. A produção conta com muitos atores locais dos países onde Gabriel trilhou, além de trechos com foco documental, mesclando depoimentos em off de quem o brasileiro teve algum tipo de conexão. Todavia, quem toma grande tempo de tela é sua namorada Cristina Reis (Caroline Abras), trazendo um contraponto interessante para tirar qualquer visão mística de Gabriel – justificando assim até as escolhas que culminaram em seu triste desaparecimento. – Veja o trailer aqui.
Uma música: “Nous Deux” de Flo Delavega
Conhecido por ter feito parte do popular duo francês Fréro Delavega, quando cantava ao lado do músico Jérémy Frérot, a carreira solo de Flo Delavega nasceu do seu desejo de diminuir o ritmo de vida. Em 2017, Flo se mudou para o coração de uma floresta na região de Landes, ao sul da França, junto de sua esposa, a cantora argentina, Natália Doco. Lá vivem com seu filho de quatro anos, Santi, de acordo com um artigo onde concedeu uma entrevista após anos como eremita.
“Foi uma grande experiência, o Fréro, e hoje vejo com muita doçura. Mas na época, eu vi especialmente essa pressão para estar na performance o tempo todo, para ser eficiente sempre. Eu precisava ver sentido. Fiz-me muitas perguntas sobre o sentido que queria dar à minha vida e trabalhar com a terra […] e viver de forma independente, foi a minha salvação naquele momento para me encontrar.
O músico de 35 anos tomou a decisão e, poucos dias depois de seu último show, começou a treinar em agroecologia que deu início ao seu projeto “La Casa del arbol”, A casa na árvore, onde hoje vive em tempo integral. Segundo o músico, a casa é toda em madeira e aquecida por lareira. A eletricidade provém de painéis fotovoltaicos instalados no exterior, não possuem instalações ligadas à água corrente e o projeto sanitário é composto por sanitas secas. O único cabo que chega até a casa é o cabo telefônico para a Internet. “Todas as nossas referências foram viradas de cabeça para baixo, porque há um certo conforto em viver na cidade”.
O resultado desse momento de reconexão culminou também no primeiro álbum solo que saiu somente em 2021 e se chama Rêveur Forêveur, algo como “Sonhador”. O projeto acabou levando Flo a realizar um festival dentro de seu próprio quintal construído com madeira recolhida na floresta e com assentos feitos de feno.
“Esse é o mundo dos sonhos. É a minha visão e o meu projeto cultural, com uma estética e universo próprio, que gostaria muito de conseguir exportar para outros lugares naturais. O mundo do entretenimento cria muita poluição, então pequenos eventos como esse permitem que você respire, imaginando as coisas de maneira diferente.”
Veja uma versão ao vivo de “Nous Deux” de Flo Delavega com a participação de Natália Doco:
Até a próxima!