O Moulin Rouge do subúrbio, a Broadway dos pobres, o Studio 54 da favela… apesar das referências, a apresentação do Chão de Estrelas não é pretensiosa; é anárquica. Adaptação do filme Tatuagem, de 2013, o espetáculo de mesmo nome é uma transposição para o palco igualmente libertária.
A história se passa nos anos 70, durante a ditadura militar, e Clécio (Cleomácio Inácio, ótimo) e Paulette (John Seabra em atuação irresistível) estão à frente do grupo. O Chão de Estrelas é a casa onde a companhia se apresenta.
A inspiração veio do Teatro de Revista, o gênero onde não há um fio condutor de ação: os espetáculos são compostos por esquetes, declamações e paródias feitos com exagero, deboche, colorido e tom desavergonhado.
Mas o contexto histórico conta muito. No Brasil, a arte e os artistas sempre foram perseguidos. Se equilibrando na função de sacos de pancada e farol de lucidez, o grupo do Chão de Estrelas representa uma época que teima em voltar.
Kleber Montanheiro, ator e fundador da Cia. de Revista e diretor da montagem, entende isso muito bem. Ele catapulta o espectador para essa fenda atemporal, estranha, onde essas duas épocas coexistem em um transe místico e cruel que é ser artista em um lugar onde a arte não é bem-vinda, ainda que necessária. Seu trabalho é um turbilhão criativo.
A montagem é enérgica, ancorada por uma encenação propositalmente mambembe, e uma cenografia lúdica. O manejo desses elementos envolve o espectador a tal ponto, que fica difícil perder a conexão com o espetáculo.
A iluminação de Gabriele Sousa tem parte importante na construção dessa atmosfera. E a forma como a plateia foi disposta, como se fossemos figurantes e o público propriamente dito do grupo fictício, dá calor à peça. O elenco todo, inclusive, está afinado com a proposta e se entrega sem nenhum freio. Nathalia Quadros, Bia Sabiá, Zé Gui Bueno, Lucas Truta e tantos outros artistas cantam, dançam, fazem graça, criando intimidade com quem assiste.
Kleber Montanheiro manteve o humor do filme. Mas transformou a história em um musical. O que foi ótimo. Para colaborar na criação, o grupo As Baías compôs 24 músicas que contextualizam o trabalho da trupe liderada pelo personagem Clécio, sem que haja uma interrupção do enredo. Ao contrário, a música é parte do elenco. É justamente na colagem desses elementos que o espetáculo se distancia do filme e ganha alma própria. É genial como a peça acontece, como o espaço é montado e desmontado seguindo cada cena, e é aproveitado pelos personagens. Duas escadas e uma tábua, por exemplo, viram uma espécie de mirante para uma das apresentações musicais mais belas do espetáculo, o momento onde Jandira (Larissa Noel), a namorada de Fininha (Matheus Vicente), entende que foi trocada por Clécio.
Aliás, outro ponto que o espetáculo faz muito bem é recortar a própria transformação de Fininha. De soldado à parte do grupo, é nele que está a pureza, a força, a libido, a sede e busca por levar essa liberdade recém-conhecida para os lugares onde ela só vive isolada. Fininha é o corpo estranho que precisa vestir farda de manhã e seguir ordens que pouco concorda só para ter futuro, pra ser alguém. Mas ele também precisa compreender que há futuro em outras formas de vida. A liberdade é o caminho pra chegar até este tempo.
Eu lembrei muito do Dzi Croquettes. O grupo realmente existiu no Brasil entre 1972 a 1976. Eles foram fundamentais pra que outras companhias existissem, como Grupo de Teatro Vivencial, do Recife, que inspirou Hilton Lacerda a criar o filme Tatuagem.
Assim como o Dzi Croquettes à época, o Chão de Estrelas de 2022 evoca um país que já foi mais confrontador, mais resistente, mais desbocado; instiga a capacidade de sonhar. Homenageia as pessoas que lutaram e morreram, e defende a arte popular, ao mesmo tempo em que devolve jovialidade às lutas que nos trouxeram até aqui.
Tatuagem ajuda a lembrar que o amor, a liberdade e a arte são marcas definitivas no peito da nossa história. Pode pegar, esfregar, negar, mas não lavar.
Tatuagem fica em cartaz até o dia 28.08 no Espaço Cia da Revista, em São Paulo.