Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:
– Bom dia, meninos. Como está a água? Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
– Água? Que diabo é isso? (…) O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida.
O texto é do David Foster Wallace. Escrito em 2009 e lido frente a uma turma de formandos de uma universidade americana. Chama-se “Isso é água“. E imagino que você já conheça de outros carnavais. Mas as palavras dele ecoam profundamente o dilema de estar imerso em um mundo sobre o qual não temos consciência.
Ver a infância da internet foi interessante. Tinha algo muito bonito naquele mundo peer to peer. Um mundo de informações onde era possível navegar livremente. Yahoo!, websites, Napster, chats, blogs, Google, fotologs, Orkut… abriram portas incríveis. Depois vieram tantos outros… tudo muito incrível. Mas passados alguns anos, algo começou a cheirar mal. E aquilo que havia sido tão desejado começava também a mostrar efeitos colaterais que aparentavam ser perigosos.
O filme O Dilema das Redes foi o primeira peça de entretenimento que conseguiu narrar de forma atraente e didática o problema que está acontecendo. Através dele, mais pessoas passarão a entender os mecanismos maliciosos que estão rodando e gerando mudanças profundas e negativas no comportamento social. O filme oferece informação para mais gente entender o que está causando toda essa polarização e a ruína de coisas tão importantes quanto as instituições democráticas.
Gosto de olhar a internet como se fosse uma pessoa pois ajuda a ter uma perspectiva evolutiva. Eu pensava muito nisso nos anos 2000, quando a internet ainda era uma criança curiosa desajeitada e tinha algo como um brilho intenso nos olhos que indicava um futuro interessantíssimo pela frente. Na virada da década de 2010 algo começou a mudar na criança que já parecia um adolescente. No ano de 2012 tive a sensação de que o jovem desengonçado começava a esquecer os ideais livres do Tim Berners Lee. Até então eu acreditava profundamente que a internet poderia ser uma entidade exclusivamente positiva, sem ter ainda a capacidade de ver sua sombra. A abertura de capital do Facebook cristalizou um momento de virada, com a certeza de que não haveria mais espaço para ter os interesses mais amplos do ser humano no centro. Pois mesmo que todo design de produto fosse pensado para o usuário ter interações mais fluidas, a pessoas passariam a ocupar também o papel de produto. Afinal o capital aberto invariavelmente pressionaria para atender exclusivamente as expectativas dos acionistas. A internet, agora observada na fase de um jovem adulto, começava a buscar mares mais revoltos e levava junto um lastro de ideologia libertária, mas que já mostrava algumas distorções.
Hackear o status quo era tudo. Quem quebrava padrões que nos mantinham presos a modelos ultrapassados se tornava herói. A internet era ainda um novo velho oeste, uma terra de oportunidades onde tudo era possível. Nesse período surgiam fatos bizarros. Cody Wilson, um cara que havia compartilhado o código de uma arma de fogo que poderia ser impressa em 3D, defendia liberação disso como se fosse uma causa nobre. No SXSW isso virava assunto. Muita gente achava que ele tinha esse direito à revelia dos riscos de pessoas, digamos, embarcarem armadas em um avião. Em 2011 um cara chamado Ross Ulbricht criou um site na deep web que permitia usar bitcoins para transação de drogas. Para muita gente ele era um revolucionário idealista que estava fazendo a disrupção do mercado internacional de drogas, e isso era muito admirável. Nesse caso, eu mesmo tinha uma inclinação positiva pelo assunto. Mas o FBI não pensava da mesma forma. Em 2014 ele foi indiciado e condenado. A pena foi prisão perpétua. Ele passou por um julgamento exemplar para deixar claro o recado de que a internet não era mais brincadeira de criança. A internet tinha chegado na idade penal.
Em 2014 eu estava no SXSW. E no último dia eu assistia a palestra do mestre Bruce Sterling, que é escritor de ficção cyberpunk, morador de Austin, profundamente ligado ao festival, e faz um keynote super aguardado por todos no último dia com comentários finais. Ele é conhecido por fazer uma leitura crítica de tudo que se passa lá, com alta dose de ironia e uma visão afiada sobre o futuro. 2014 tinha sido o ano em que Big Data tornara-se assunto global. Julian Assange e Edward Snowden, ambos foragidos, tinham feito keynotes remotos. Aí, no último dia, veio o Bruce para chacoalhar o público. Ele falou sobre a forma como as pessoas estavam fazendo mal uso da internet. E evidenciando para muitos da platéia a incoerência de alguns dos ídolos digitais do momento.
Caras como Cody e Ross se pareciam com a plateia, vestiam-se iguais, bebiam a mesma cerveja, compareciam nos mesmos encontros, era tecnicamente geniais, mas eles eram também os novos vilões que estavam nascendo. Talvez seduzidos pela acolhida de uma comunidade vibrante e com visão turva para avaliar eticamente as coisas. Uma grande comunidade global apaixonada cegamente por todo tipo de inovação, mas sem a capacidade de pensar responsavelmente sobre os efeitos de tudo que estava sendo desenvolvido naquele ambiente ainda tão livre e fértil. As pessoas saíram do auditório com sensação de que tinha acabado a festa. E que a internet não seria mais um lugar onde tudo e qualquer coisa poderia ser feita.
Curioso perceber que apenas parte dos problemas estavam sendo mapeados naquele momento. Pessoas estavam sendo presas, mas em outra grande parte, bastante relacionada a formas de fritar o bacon do Big Data, problemas ainda maiores estavam sendo incubados. Só que esses problemas só viriam a ser sentidos alguns anos depois.
Por mais de duas décadas a internet foi ignorada pela lei. E quando passou a ser percebida, manteve-se inacessível como uma caixa preta lacrada. Pensar em legisladores criando leis para regular código é como pensar em uma pessoa nascida em 1920 sendo desafiada a ligar um computador, escrever uma carta no Google Docs e enviar por email. Impossível sem ajuda do bisneto. O fato é que por muitos anos os legisladores nem sequer perceberam a necessidade de se aproximar e buscar entender o que se passava nos códigos e como isso ia influenciar a sociedade e o planeta. E assim a internet andou sem regulação alguma.
O petróleo digital chamado Big Data não parece perigoso. E ainda não é considerado um vilão. Pelo contrário, ainda é um daqueles assuntos que profissionais de marketing e tecnologia precisam usar sua eloquência para exibir seus conhecimentos. Fato é que as Big Techs avançaram muito nisso. E a monetização foi magnífica. Tornaram-se as maiores empresas do mundo. E o mercado naturalmente andou muito satisfeito e desinteressado em encontrar problema nessa nova fonte de receita. E tudo seguiu sendo explorado sem regulação.
Hoje, 2020, ainda ainda que as leis de dados venham sendo desenvolvidas e aplicadas, há inúmeras caixas pretas de algoritmos e AIs que sequer são consideradas como alvo de cuidado regulatório. E, como se pode presumir, a energia de auto-regulação das empresas de tecnologia não é grande o suficiente para garantir um desenvolvimento ético cuidadoso com o bem estar coletivo em foco ao desenhar e aplicar os mecanismos de monetização. Então, não é uma questão de mocinhos e vilões, é mais complexo do que isso.
E é nesse sentido que a narrativa do Tristan Harris é tão importante. Pois ele amplia a consciência sobre as deformidades desse sistema. E mostra a necessidade evidente de regulação. Há também uma sugestão, ainda que rápida e pouco detalhada, de medidas financeiras de contenção, como a sugestão de taxação para acúmulo de dados. Mas essa ou outras medidas precisam avançar. Há enorme necessidade de corrigir o uso exagerado da customização que cria bolhas de desinformação. Não é aceitável o Google dar respostas tão diferentes para diferentes pessoas conforme as suas preferências. Diferentes, sim, mas opostas, não. Esse é o limite a não ser ultrapassado. Nada justifica a construção de informações opostas que são tão profundamente sutis e manipulam a percepção pelo lucro e geram mundos opostos inconciliáveis.
Críticos dirão que o filme não é profundo o suficiente ou que não traz novidades, ou que… Seja o que for, nada disso é mais importante do que aumentar a quantidade de pessoas que entendem o mundo que estamos vivendo. Precisamos entender sobre a água onde estamos submersos. O filme é urgente.