Antes de dormir, ele gosta de pegar um livro, sentar-se na poltrona cinza que ganhara de aniversário em 2019, e ler alguma coisa. Acontece que ontem, pouco depois de colocar o chá de camomila na caneca e seguir para o quarto, ouviu um barulho. Um barulho alto, de coisa caindo. No cômodo, deu de cara com seu exemplar de A Ilíada atirado no chão. Como foi parar ali se não tinha vento, tremor ou qualquer outra pessoa com ele na casa? Abaixou-se para apanhar o calhamaço e 2666 despontou atrás dele. O livro de Roberto Bolanõs, estranhamente, caiu onde ele parou de ler: na página 215. Sexus também veio ao chão. Ah, esse falta só 50 páginas. O lê há mais de quatros anos. Abandonou sabe lá o motivo, mas Agosto, tinha planos de retomar ainda em 2022. Sobrevivente caiu em seguida. Fez um barulho mais rancoroso, como se adivinhasse que jamais seria terminado. Quem aguenta Chuck Palahniuk depois dos 30 anos? De uma vez só, que nem um time de nado sincronizado, despencaram das prateleiras dois exemplares de João Gilberto Noll, um livro perdido do Suassuna, dois sermões do Padre Antônio Vieira e as obras completas e reunidas de Shakespeare, Nelson Rodrigues e Ariano Suassuna.
A graça da coisa acaba quando ele vê os livros se mexendo, ganhando vida. A porta do quarto é bruscamente fechada por Graça Infinita. Esperando Godot se joga em sua mão a ponto da caneca desequilibrar. O aguaceiro fervente recai na Bíblia. Os livros todos abanam suas páginas e, feito um motim, se atiram sobre ele.
O homem grita muito, mas o desespero é cortado pela lembrança da cena de As Viagens de Gulliver, bem no momento em que as miniaturas derrubam o protagonista – como é mesmo o nome dele? Jack Black?
120 Dias de Sodoma é o líder da revolta literária. Sim, ele se arrepende de não ter terminado este livro naquele natal, em 2006. Algum tio deu de amigo secreto. Ele achou irônico porque tinha terminado o casamento. Depois, o livro ficou impregnado com as memórias do relacionamento e deu-se por vencido. Não leria nenhuma só palavra a mais.
Os livros conseguem jogá-lo no chão. Os exemplares de poesia parecem tão assustados quanto o homem. Mas, Viagem ao Fim da Noite, do Celine, mexe as páginas amareladas como se gargalhasse.
Ele entende o ódio. Grita mais alto enquanto é amarrado por uma corrente feita de marca-textos. Pede que os livros abandonados tenham clemência, que os livros se voltem para o colega, Confissões. Ele terminou este. Adorou Santo Agostinho. Até botou outro dele no carrinho da Amazon.
Ao que parece, não deveria ter pronunciado Amazon. Se antes havia alguma chance, agora sabe que está completamente aniquilado: Crime e Castigo aparece no topo da estante. É aquele seu exemplar capa dura, edição de 1973.