O Conjunto Muribeca foi construído na periferia de Recife pelo antigo Banco Nacional da Habitação e entregue em 1982. O poeta Miró morou lá. E algumas das suas “besteiras” ele escrevia nas paredes das casas. Em 2015, o Conjunto Habitacional começou a ser demolido. Miró da Muribeca morreu em 2022.
A partir deste apagamento, o grupo Magiluth levanta no palco o espetáculo “Miró – Estudo n.2”, em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo. A experiência usa o processo de criação de um personagem para resgatar a obra do poeta marginal e manter fresca a tinta de sua obra. João Flávio Cordeiro da Silva, nome de batismo do escritor, publicou mais de 15 livros.
Em cena, Giordano Castro, Bruno Parmera e Erivaldo Oliveira expõem a planta-baixa de um espetáculo como um jogo aparentemente zombeteiro. Antes do protagonista, existe a pessoa. Ou é a pessoa que projeta um personagem?
A discussão, propositalmente confusa no início, sobe degraus: vai do selftape – quando o ator se grava – passando pela formação artística dos próprios integrantes, até desaguar numa convulsão que injeta Miró para dentro do palco com a força de um acidente.
Se o rodízio do elenco assumindo a função ora de atores, ora de diretores, cenógrafos e iluminadores diante do público parece improviso, o jogo cênico alicerça a compreensão de que a construção de um personagem é à céu aberto mesmo, literalmente; é entendida pelo lugar onde ele mora, pelas pessoas com quem ele convive, pela água bebida para a matar a sede. Daí, o espanto de presenciar um copo no chão, vítima de um assassinado da polícia, deflagrou a poesia em Miró que agora acresce ao Magiluth.
As vivências pessoais do elenco também foram matéria-prima do “Estudo n. 1, Morte e Vida”. Mas em Miró elas se organizam de maneira mais afetiva.
O Magiluth conheceu o poeta. Durante uma apresentação do grupo, Miró interrompeu a apresentação e pediu para falar. A cena é contada no espetáculo. Não interessa se é verdade ou não. A beleza do encontro dá à memória do grupo um caráter atemporal e quase uma previsão dramatúrgica.
É mágico a forma como o Magiluth parece lutar contra as retroescavadeiras que demoliram o Conjunto Muribeca puxando a poesia de Dom Quixote contra os moinhos de vento. A fantasia não pode ser demolida. Por isso, a poesia de Miró não existe em qualquer lugar: ela é um lugar, é uma morada, um universo inteiro criado no dia-a-dia, no chão, na parede, na marginalidade.
Transformadas saco de cimento poético, as “besteiras” de Miró alicerçaram a resistência da periferia, servindo de único espaço onde é permitido viver e pensar os personagens-pessoas brasileiros que se opõem ao tipo cru de civilidade. Construir “Miró” é admitir que ele não tem formato ideal. Nordestino, brasileiro, latino-americano. Preto. As periferias são seus pedaços. Daí, a fecundação desse personagem acontece através do exercício criativo do grupo na construção de uma identidade cultural do próprio Miró, numa onisciência de possibilidades e lutas históricas e sociais.
Durante a sessão, o Magiluth ganhou de presente a interrupção de uma espectadora. Ela reagiu com um grito de “que isso!” quando dois dos atores se beijaram. Ao encenarem um tapa, foi a única da plateia a rir muito. Em outro momento, espantou-se com “meu Jesus!”
Talvez, a interrupção possa ser caracterizada como desconfortável, inoportuna, como um incômodo provocado por uma “menina doidinha”.
Muribeca é uma palavra indígena cujo significado é “mosca inoportuna”. As obras do seu mais poeta morador são edifícios com janelas de ônibus porque elas “são danadas pra botar a gente pra pensar. Ainda mais quando a viagem é longa.” Para mim, a interrupção daquela espectadora foi uma performance à la Miró. Em dado momento, ao submergir à cena o assassinato presenciado pelo artista na infância, Erivaldo Oliveira contesta a platéia: “são testemunhas e não fizeram nada”.
Alguém fez. Aquela espectadora fez. Ela se tornou inquilina do espetáculo. E pelos escombros do Magiluth, mesmo quem assistiu de fora, viu que Miró da Muribeca não é estudo, nem protagonista: como personagem-espelho de milhares de histórias, Miró tem de ser um conjunto.
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