Na tarde do último domingo de janeiro, assisti à final da National Football Conference, que definiria um dos finalistas do Super Bowl. No início do quarto período, o Philadelphia Eagles estava a apenas uma jarda da linha de gol do Washington Commanders, pronto para executar uma de suas jogadas mais temidas: o Brotherly Shove. Essa estratégia, característica do futebol americano, consiste em um lance no qual o quarterback recebe a bola e é imediatamente empurrado por trás por seus companheiros de equipe para avançar. No caso do time atual dos Eagles, essa jogada é considerada praticamente imparável, garantindo quase sempre a pontuação.
Cientes de que quase certamente cederiam um touchdown, os Commanders, que estavam em desvantagem, decidiram adotar uma abordagem inusitada. Primeiro, um de seus defensores saltou propositalmente sobre a linha do gol antes do início da jogada, resultando em uma penalidade por invasão. Na jogada seguinte, repetiram a estratégia. E novamente na jogada subsequente. Ficava evidente que sua intenção era continuar infringindo a regra repetidamente. A cada infração, os árbitros moviam a bola metade da distância até a linha do gol, seguindo o procedimento padrão para penalidades defensivas próximas à end zone.
Qualquer pessoa familiarizada com o princípio da divisibilidade infinita em geometria pode perceber o problema aqui. Um segmento de reta — como a distância entre a linha de scrimmage e a end zone — pode ser infinitamente dividido. Isso significa que, em teoria, os Commanders poderiam ter continuado com sua tática indefinidamente, e os Eagles poderiam ter avançado repetidamente metade da distância até a linha de gol sem jamais alcançá-la, prolongando o jogo até o final dos tempos.
Felizmente para os jogadores, treinadores e os quase 70.000 torcedores presentes, os árbitros encontraram uma solução para esse paradoxo específico ao invocar uma regra pouco conhecida da NFL, que permite que o time adversário seja automaticamente premiado com um touchdown caso a defesa continue cometendo penalidades intencionais para impedir seu avanço. Isso foi, enfim, suficiente para fazer os Commanders desistirem da estratégia.
O que nos leva ao verdadeiro assunto deste texto, o chamado Doomsday Clock (o Relógio do Juízo Final ou do Apocalipse, dependendo da tradução escolhida).
Criado e administrado pelo Bulletin of the Atomic Scientists — organização fundada por ex-físicos do Projeto Manhattan alarmados com a ameaça representada pelas armas nucleares — o Doomsday Clock é uma representação simbólica da proximidade da humanidade de sua própria destruição existencial. A cada ano, um conselho de especialistas em diversas áreas, como ciência nuclear, mudanças climáticas e segurança cibernética, ajusta os ponteiros do relógio.
Quanto mais próximo da meia-noite, mais iminente seria a extinção da humanidade.
Em 2023, o Bulletin of the Atomic Scientists ganhou destaque ao adiantar os ponteiros do Doomsday Clock em 10 segundos, fixando-o em 90 segundos para a meia-noite — a menor distância já registrada desde sua criação em 1947. Indicando que a humanidade estaria, supostamente, mais próxima da aniquilação do que em períodos extremamente críticos, como 1964 (não muito depois da Crise dos Mísseis de Cuba, quando o relógio marcava 12 minutos para a meia-noite) ou 1984 (logo após um dos momentos mais tensos da Guerra Fria, quando restavam apenas 3 minutos para a meia-noite). Essa também foi a primeira atualização após a invasão da Ucrânia pela Rússia, que reacendeu temores nucleares em um nível não visto há décadas.
No ano passado, citando fatores que iam desde a guerra na Ucrânia e o conflito em Gaza até as mudanças climáticas e o avanço da inteligência artificial, o conselho optou por manter o relógio em 90 segundos para meia-noite. Então, na manhã de terça, 28 de janeiro, foi revelada a nova configuração do relógio. Rufem os tambores: 89 segundos para meia-noite, um segundo mais perto do juízo final.
O conselho listou uma série de fatores: risco nuclear contínuo na Ucrânia e a desintegração do controle de armas nucleares; os impactos crescentes das mudanças climáticas após o que provavelmente foi o ano mais quente já registrado; a ameaça de novas doenças como a gripe aviária; o progresso da IA e, especialmente, potenciais aplicações militares; e desinformação e insegurança cibernética.
Se isso lhe soa familiar, é porque os fatores são praticamente os mesmos dos anos anteriores — um padrão que o presidente do conselho, Daniel Holz, reconheceu no evento de terça-feira. Em sua declaração, ele ressaltou que esses desafios “não são novos”. “No entanto, observamos um progresso insuficiente no enfrentamento dessas questões fundamentais e, em muitos casos, tem levado a impactos cada vez mais negativos e preocupantes”, continuou.
Ainda assim, o anúncio de terça-feira destacou um problema fundamental do Doomsday Clock: ele está ficando sem tempo — talvez metaforicamente, como deveria ser no contexto da sobrevivência da humanidade, mas também literalmente, já que um relógio possui um número limitado de horas, minutos e segundos.
Esse dilema reflete um desafio enfrentado por todo o campo de estudo do risco existencial. Assim como os árbitros na Filadélfia, durante o jogo dos Eagles, há um limite para a quantidade de vezes que um alerta pode ser emitido antes que ele comece a perder seu impacto. Especialmente porque, apesar de parecer que estamos cada vez mais próximos da aniquilação, nunca chegamos lá de fato.
De certa forma, o Doomsday Clock tornou-se vítima de seu próprio sucesso como um dos símbolos mais importantes do medo nuclear durante a Guerra Fria no século XX. A imagem dos ponteiros avançando inexoravelmente em direção à meia-noite — o momento em que os mísseis seriam lançados — era tão poderosa que a icônica graphic novel Watchmen, dos anos 1980, a utilizou como um leitmotiv inesquecível.
Assim como os filmes do James Bond e do Rambo, o Relógio do Juízo Final perdeu parte da sua relevância após o fim da Guerra Fria e a aparente eliminação da sua principal razão de ser: a guerra nuclear. Com essa ameaça supostamente superada, o relógio expandiu seu escopo para incluir novos perigos, como as mudanças climáticas e as doenças infecciosas, e, mais recentemente, preocupações emergentes das décadas de 2010/2020, como a desinformação e o retrocesso democrático.
O problema é que os riscos existenciais não nucleares simplesmente não se encaixam bem na metáfora do relógio. Uma guerra nuclear é, em grande parte, um risco binário — ou os mísseis são lançados e o relógio marca meia-noite, ou não. Além disso, há um campo consolidado de geopolítica e diplomacia dedicado a avaliar precisamente o nível de risco nuclear no mundo. Trata-se de um perigo relativamente mensurável e compreensível, na medida do possível.
No entanto, riscos existenciais mais recentes não seguem essa mesma lógica. A mudança climática, por exemplo, não é um risco binário, mas sim progressivo e cumulativo. Em vez de um ataque cardíaco fulminante, é mais parecido com um quadro crônico de diabetes, com agravamento lento e contínuo. Se o risco climático fosse um relógio, seria difícil dizer que horas são — ou até mesmo se ele realmente chegaria a marcar meia-noite.
Outros riscos são ainda mais difíceis de monitorar. Recentemente, a inteligência artificial passou por um de seus momentos mais movimentados: o DeepSeek, da China, demonstrou que modelos avançados podem ser mais acessíveis e baratos do que a indústria imaginava, enquanto os gigantes da IA nos Estados Unidos anunciam planos para um investimento sem precedentes de US$ 500 bilhões.
Mas a IA é realmente um risco existencial? Talvez — embora ninguém possa afirmar com certeza como essa ameaça se desenrolaria ou quão próximos realmente estamos de um cenário crítico. Além disso, ao contrário das armas nucleares, a IA traz benefícios inegáveis para a ciência e a sociedade, tornando inviável simplesmente abandoná-la. No campo da medicina, por exemplo, algoritmos de IA têm sido usados para diagnosticar doenças com maior precisão do que alguns médicos humanos ou como no caso do DeepMind AlphaFold, para revolucionar a criação de estruturas de proteínas, acelerando a descoberta de novos medicamentos. Na luta contra as mudanças climáticas, modelos avançados de IA ajudam a prever padrões climáticos extremos e otimizar o uso de energias renováveis. Além disso, na segurança cibernética, sistemas baseados em IA detectam fraudes financeiras e previnem ataques digitais de forma mais eficaz do que métodos tradicionais. Com impactos positivos também na educação, na automação industrial, na acessibilidade para pessoas com deficiência… A lista é longa.
Quando se trata de doenças infecciosas, por mais alarmantes que sejam os surtos recentes de gripe aviária, não há certeza de que essa será, de fato, a próxima pandemia — nem a respeito de quão grave ela poderia ser caso ocorresse. Um novo vírus inevitavelmente surgirá, mas é provável que sejamos pegos de surpresa, assim como fomos com a Covid.
Reconheço que vivemos em um mundo tomado pelo medo, mas minha preocupação é que, à medida que o Doomsday Clock dilui seu foco original da guerra nuclear — um risco que, de fato, está se agravando — e faz pequenos ajustes ano após ano, ele acabe desgastando o próprio público que deveria mobilizar. Há um limite para quantas vezes se pode afirmar que o fim do mundo está próximo ou para quantos riscos podem ser elevados à categoria de existenciais, antes que as pessoas simplesmente deixem de prestar atenção.
Um posfácio sobre o jogo dos Eagles: após o aviso final dos árbitros, o time conseguiu executar seu Brotherly Shove, empurrando o quarterback Jalen Hurts para a end zone e garantindo o touchdown (veja a sequência inteira do lance descrito aqui), o que abriu o caminho para uma vitória esmagadora por 55-23 (Go Birds!). Podemos receber todos os alertas do mundo — mas isso não significa que podemos impedir o inevitável segurando os ponteiros do relógio.