Em monólogo emocionante, Othon Bastos não passa nada a limpo

Longe de ser um “rascunho”, a vida desse artista brasileiro é um passeio pela história da própria cultura do Brasil.
Homem idoso atuando em palco com retrato ao fundo. Homem idoso atuando em palco com retrato ao fundo.

Para decidir quem será o representante da turma, a professora Eliete pede aos alunos que interpretem um poema de Olavo Bilac. Em vez da encenação acalorada de sua concorrente, o garoto Othon Bastos prefere algo sutil. Depois da leitura, a turma é dispensada, mas Othon permanece na sala: “Você pode fazer qualquer coisa na vida. Mas prometa que nunca será artista”, suplica a professora. 

Um dos maiores atores do Brasil, Othon Bastos levou a promessa a sério e, até os 17 anos, tinha metido na cabeça que seria dentista. Hoje, aos 91, a história do artista, contada no solo “Não me entrego, não”, em cartaz no Sesc 14 Bis, em São Paulo, se confunde com a formação do próprio teatro brasileiro. Ele protagonizou “Um grito parado no ar”, com Gianfrancesco Guarnieri, “Galileu Galilei”, no Teatro Oficina, e representou o Cinema Novo em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” e “São Bernardo”, para citar alguns exemplos destacados por ele mesmo, durante o espetáculo. 

A vitalidade em cena lembra a de um menino chegando pela primeira vez em algum lugar, o primeiro dia da escola ou em algum destino após horas dentro do carro. Não deve ter sido fácil manter essa capacidade, já que o ofício é fundamentado na frustração, na espera, na falta de oportunidades e no ataque, ano após ano, governo após governo, à classe artística. De modo que, ao pisar no palco, é impossível Othon Bastos abandonar tal carga dramática digna dos maiores textos já escritos. 

Para manobrar os incontáveis episódios vividos pelo ator, que tinha mais de 600 páginas documentadas, o autor, Flávio Marinho, aposta na simplicidade. Primeiro, elege a memória (interpretada por Juliana Medela) como um personagem a dividir o palco com ele, fazendo a troca ser um ótimo motor da encenação. Quando Othon pede à “memória” que explique alguns dados – ou mesmo ao ser “desmentido” por ela – a montagem ganha frescor, graça e mantém o ator aquecido em cena. O jogo também serve para agilizar informações e estruturar, de modo linear, a vida do artista. 

Se o cenário se basta por alguns elementos, como uma cadeira, um mancebo e imagens das produções mais apaixonadas feitas por Othon, é o poder da palavra que está destacado, o ator enquanto um tipo de guardião dos significados, sinônimos e sílabas que compõe o seu íntimo. 

Não sei se dá pra classificar a interpretação porque o trabalho dele em “Não me entrego, não” Então, é um baita exercício ler o texto antes ou depois do espetáculo. De preferência, próximo da sessão porque a frieza da leitura vai chocar com o calor de assisti-lo ao vivo, produzindo uma estranheza térmica imensa. A cada novo lance do monólogo, Othon ressuscita as palavras e consegue materializá-las, de fato, como partes do corpo, como mãos, pernas, fios de cabelo, olhos e saliva, em um exercício chocante. Embora ele conte histórias do passado, o tempo da sua cena parece outro.  

Minha sessão foi especial porque parte do elenco da nova montagem de “Um grito parado no ar”, que recentemente fez temporada em São Paulo, esteve presente. No entanto, foi ver Renato Borghi ali, outro cânone da dramaturgia brasileira, deu a certeza de que, enquanto Othon atua, não há passado, não há futuro. Durante aqueles noventa minutos, o tempo, provisoriamente, parou para todos. Provisoriamente. E viver sem tempos mortos, comunicando o sabor da vida, talvez, seja isso: o flagrante puro, mas também irrealizável, do tempo. 

Em dado momento, Othon recita um verso de Mário Quintana, que diz: “Não faças da tua vida um rascunho. Poderás não ter tempo de passá-la a limpo”. Provavelmente, esse tempo existiu para ele. Mas o ofício de atuar não cabe em um começo, tampouco fim. No teatro, todo ator é “durante”. 

Ficha Técnica

Elenco: Othon Bastos
Texto e Direção: Flavio Marinho
Diretora Assistente e Participação Especial: Juliana Medella
Direção de Arte: Ronald Teixeira
Trilha Original: Liliane Secco
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Programação Visual: Gamba Júnior
Fotos: Beti Niemeyer
Visagismo: Fernando Ocazione
Consultoria Artística: José Dias
Assessoria de Imprensa (Nacional): Marrom Glacê Comunicação – Gisele Machado e Bruno Morais
Assessoria de Imprensa (SP): Canal Aberto – Márcia Marques, Daniele Valério e Flávia Fontes
Assessoria Jurídica: Roberto Silva
Coordenador de Redes Sociais e Contrarregra: Marcus Vinicius de Moraes
Assistente de Diretor de Arte: Pedro Stanford
Assistente de Produção: Gabriela Newlands
Administração: Fábio Oliveira
Produção Local: Roberta Viana
Desenho de Som e Operação: Vitor Granete
Operador de Luz: Luiza Ventura
Direção de Produção: Bianca De Felippes
Produção: Gávea Filmes
Idealização: Marinho d’Oliveira Produções Artísticas
Realização: Sesc São Paulo

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