Sapiens

Sapiens Sapiens

Quando criança, no interior de Minas, a gente conseguia saber exatamente as horas apenas olhando a posição do Sol. A chegada de uma chuva também era bem fácil de se perceber, com um cheiro típico que anunciava a sua chegada, mesmo que o tempo não tivesse com cara de trovoadas. Quem vive e quem viveu nos rincões desse Brasil sabe do que estou falando. Interessante é que essa capacidade de sentir o que parece intangível se reinventa com o tempo e muda de forma, dependo do lugar e das circunstâncias. Uma pessoa do interior se sentiria perdida numa metrópole, já que o seu formato lhe foge muito dos parâmetros aos quais está acostumada. Um peixe fora d’água. Um “peixe” urbano também ficaria completamente deslocado na roça, achando todos os cheiros, mosquitos e natas no leite coisas de outro mundo.

Contei essa história toda porque me lembrei exatamente disso quando me deparei, há um tempo, sobre a questão da tecnologia, mais precisamente sobre o item automação. Parece que o assunto é moderno, mas ele tem sido o eterno herói e o eterno vilão da nossa história. Por quê? Porque todos as nossas necessidades precisam ser sanadas, mas não queremos nos dar ao trabalho. Houve um tempo em que havia escravos designados para todas as funções não desejadas por seus senhores. Como ter escravos começou a pegar muito mal, as mentes começaram a ter ideias e a criar formas de substituir a mão de obra que oferecia conforto e prazer. Mas, pra entender melhor, vamos voltar um pouco no tempo.

O Homo Sapiens, como muita gente sabe, teve uma saga dura e complicada na trajetória pela conquista do planeta Terra. Há 70 mil anos, nosso parente recebeu a alcunha de “sábio” porque começou a pensar em seus problemas e a revolvê-los. Frio, fome, inimigos, clima, predadores, etc., etc., etc. Cada necessidade o fez pensar em possíveis saídas, cada situação o impeliu na direção de novas possibilidades. O tempo passou, e o nosso herói foi vencendo um desafio de cada vez, até tornar-se senhor soberano da terra que havia dominado, ao custo, é claro, de muitas mortes, dor e sofrimento e milhares de anos na incessante labuta da tentativa e erro.

O autor do best-seller Sapiens, Yuval Noah Harari, diz que a maioria dos mamíferos sai do útero como cerâmica vidrada saindo de um forno, “– qualquer tentativa de moldá-los novamente apenas irá rachá-los ou quebrá-los”. Para ele, os humanos saem do útero como vidro derretido saindo de uma fornalha, podem ser retorcidos, esticados e moldados com surpreendente liberdade. “É por isso que hoje, podemos educar nossos filhos para serem cristãos ou budistas, capitalistas ou socialistas, belicosos ou pacifistas”, afirma. Acredito que essa capacidade nos abriu oportunidades incríveis para chegarmos até aqui. Outra figura importante que gostaria de trazer ao baile das ideias é o físico popstar Neil deGrasse Tyson, que afirmou serem “os sonhos sobre o futuro sempre povoados com novos aparelhos”, ou seja, o sentimento que nos moveu para a conquista da Terra precisou ser materializado em objetos que se tornassem extensões de nós mesmos, evoluindo em cada necessidade que era satisfeita.

À medida que a humanidade avançava, delegávamos cada uma de nossas necessidades mais básicas, porém importantes, aos gadgets (novos aparelhos) que faziam o nosso trabalho, nos permitindo gastar nosso tempo com outras coisas. Onde quero chegar? Claro que não há um lugar definitivo, mas estamos, acredito firmemente, em uma esquina histórica. Nosso instinto criativo está em um volume altíssimo, ampliado pela sede de novidades e pelas consequências trágicas de 2 séculos vividos em meio a um caos evolutivo, que transformou de forma duvidosa o mundo que conhecemos, e essa transformação precisa ser revista, antes de ser levada adiante. E a atual geração parece ter percebido isso, a despeito de uma turminha de “gente velha” e empacada, agarrada a velhos usos e costumes, ainda acreditando na imbecil força das armas nucleares como prova de poder virilidade.

Gosto quando Nelson Rodrigues fala que “O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da inexperiência”. Sim, o jovem é inexperiente, mas é sempre a chave de qualquer mudança. A sua inexperiência é a única saída para novas escolhas e possíveis mudanças radicais, que podem mudar as coisas, claro que para melhor ou pior, mas, isso só poderemos saber se nos permitir a experiência. Existe uma tensão no ar. Interessante que Harari, em seu livro Sapiens, diz que houve um salto cognitivo muito rápido que nos possibilitou dominar o meio ao nosso redor, que superou a capacidade de nossos corpos de lidar com isso. Por isso somos tão dependentes de nossas criações, de nossas telas coloridas, botões e fraldas descartáveis.

Em um mundo que muda tão rápido, tanto que nós, os criadores, não conseguimos compreendê-lo a tempo de ver a mudança de casca, que mal respeita um singelo piscar de olhos, já nos tornamos reféns de nossas invenções. Tememos perder nossos empregos para as máquinas. Estamos apavorados com a ideia de nos tornar obsoletos. Todos estamos. Basta olhar ao redor. Houve um tempo em que a enxada tirou o emprego de catadores, a escrita de contadores de história, a imprensa de monges copistas, a TV de atores de teatro, o tear de tecelões manuais, a pólvora de forjadores de espadas, a bomba atômica de exércitos inteiros e, agora, a própria bomba perdeu seu sentido com a guerra de ideias, na qual potências bombardeiam umas às outras com ideologias, mantendo todos nós atentos, de olhos esbugalhados, aterrorizados, dispostos a comprar qualquer coisa que nos alivie a tensão.

Claro que, tragédias à parte, a realidade é essa: a nossa essência nos fez criadores e criativos, sempre em busca de soluções para o que consideramos problema. Essa inquietação vai nos provar o tempo todo que a última ideia não é tão boa assim, então voltamos à prancheta, na esperança de aperfeiçoar o antigo, para abrir novas possibilidades. Isso toma muito tempo, então os robôs vão “resolver” todos os nossos problemas, inclusive dizer que horas são e se vai chover hoje. Seremos eternas vítimas de nosso complexo de divindade. Não há volta. Nossas escolas estão prontas para lidar com as revoluções que já estão acontecendo? Saberemos viver nesse mundo que oferecerá tantas possibilidades? Sinceramente, não sei. Meu particular medo é ainda distópico, que a nossa incessante busca acabe nos levando ao encontro de uma criação tão sofisticada que nos sirva de castigo. Espero que haja uma solução, e que ela não seja digital.

4 comments
    1. Sim, verdade! Mas, como diz Kevin Ashton em seu livro How to Fly a Horse, “e não devemos exigir que possamos prever todas as consequências de nossas criações, sejam elas boas ou más. Temos uma responsabilidade diferente: buscar ativamente essas consequências, descobri-las o mais cedo possível e, se forem ruins, fazer o que os criadores fazem melhor: recebê-las como novos problemas a serem solucionados.”… ou seja, prefiro me apegar à uma fina camada de esperança, distópica ou não, mesmo que ela divida o planeta, pois, pra falar a verdade, não será a primeira vez e espero que não seja a última… espero!

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