

Por Giuliano Cesar
Diretor criativo e sócio-fundador da NOV’Brand, estúdio de branding e design com atuação no Brasil, EUA e Itália. Com mais de 25 anos de experiência em publicidade, design e tecnologia, atuou em agências como DM9, Africa e DPZ, com foco na construção e reposicionamento de marcas.
A nova linguagem visual da Apple, Liquid Glass, será lançada neste outono (no hemisfério norte) em todos os sistemas operacionais da empresa. Não é apenas uma reformulação estética — é uma preparação silenciosa para o maior salto de interface desde o iPhone. Uma transição calculada da era da tela para a era do espaço. O que a Apple está fazendo é nos desacostumar da ideia de que interagir com tecnologia significa tocar uma superfície. E nos acostumar com outra: informações podem flutuar no ambiente, sobrepostas à realidade.
Desde 2007, nossa relação com interfaces digitais tem sido mediada por telas. Esse modelo, que parecia definitivo, agora revela sua natureza transitória. A transição já deu seus primeiros passos com o Vision Pro — ali, objetos digitais respondem à luz natural, interfaces se ajustam à profundidade, informações flutuam onde antes só havia ar. O Liquid Glass traduz essa lógica para as telas que ainda carregamos: cada transparência, cada blur adaptativo recondiciona nossas expectativas sobre onde o digital pode existir. A Apple não espera que desejemos abandonar as telas. Está moldando esse desejo antes que seja formulado, introduzindo a linguagem do amanhã no cotidiano de hoje. Se isso significa sacrificar contraste ideal ou hierarquia visual clara — princípios sagrados do design de interface —, que seja. A pedagogia importa mais que a perfeição. O futuro exige novos hábitos visuais, não a otimização do presente.
Aqui mora um movimento sutil de construção contínua de marca. A Apple cria uma assinatura visual que ultrapassa dispositivos individuais e constrói valor através da consistência experiencial. Enquanto rivais tentam reposicionar suas marcas com campanhas, a Apple o faz pela experiência. Marca, para ela, não é o que se diz; é o que se entrega, sensorialmente. Em vez de construir uma narrativa verbal, ela cria uma atmosfera. O Liquid Glass se torna ferramenta estratégica: sua transparência desloca o usuário da lógica da tela para uma lógica espacial, onde cada gesto pode ocupar o espaço.
E nenhuma marca domina a experiência sensorial como a Apple. Nas lojas, por exemplo, iMacs e MacBooks ficam posicionados com inclinação de 70º. Parece ergonomia — o melhor ângulo para visualizar a tela. Mas o objetivo é outro: esse ângulo força o usuário a reposicionar o dispositivo, criando contato físico inevitável. Esse toque “acidental” com metal frio, bordas precisas, peso calibrado, intensifica o envolvimento emocional e aumenta as chances de compra. É persuasão através da materialidade.
O mesmo princípio se aplica ao Liquid Glass. Suas camadas translúcidas não são apenas estética; são pedagogia. Cada notificação que flutua sobre o conteúdo, cada menu que se dissolve no fundo ensina que informação não precisa de moldura fixa. Que o digital pode existir em camadas, profundidades, transparências. É um novo alfabetismo visual sendo construído update por update. A genialidade está em fazer isso parecer evolução natural, não revolução forçada.
Há precedentes. A transição do skeuomorfismo para o flat design em 2013 não foi apenas mudança estética. Foi preparação para telas maiores, resoluções múltiplas, um ecossistema em expansão. Agora, o movimento é mais ambicioso: preparar para quando não houver tela alguma. O Liquid Glass é a ponte sensorial entre o retângulo de vidro que conhecemos e o campo visual infinito que nos aguarda.
A Apple não matará o iPhone com um evento bombástico. Vai fazê-lo desaparecer devagar, como fez com o botão Home, o iPod, os cabos. E o Liquid Glass será lembrado como o início dessa transição — a primeira camada transparente de um movimento maior. Não se trata de vidro. Trata-se de nos ensinar a ver diferente e preparar o mundo para quando o digital não estiver mais na palma da mão, mas dissolvido no espaço à nossa volta.